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Micro/Macro
Estrelas estranhas
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
A natureza, como é de praxe, continua nos passando a perna. Podemos ver o desenvolvimento da ciência
como uma corrida sem uma reta final,
sem uma chegada. A pista se alonga continuamente, cheia de surpresas que jamais poderíamos haver previsto antes de
contornar a última curva. O que, aliás, é
ótimo. É importante não esquecer que a
natureza é mesmo muito mais esperta do
que nós. A nossa ciência é apenas uma
descrição daquilo que somos capazes de
enxergar, debruçando-nos sobre uma
pequena janela aberta para uma realidade de enorme complexidade. Mas esse
esforço todo é mais do que recompensado pelas coisas magníficas que podemos
vislumbrar a partir de nossa humilde
perspectiva.
Em meados de abril, dois grupos de astrônomos divulgaram suas descobertas
relativas a duas estrelas muito estranhas.
Essas estrelas fazem parte de uma população que já é meio excêntrica, a das estrelas de nêutrons. Talvez o leitor tenha
ouvido falar em objetos chamados pulsares (mencionados até em um dos filmes da turma da Mônica, na década de
80): esses objetos têm massas comparáveis à massa do Sol, mas raios de apenas
dez quilômetros, em média. Ou seja, um
sol espremido no volume de uma montanha, o que resulta em uma densidade
absolutamente enorme: uma colher de
chá da matéria que compõe uma estrela
de nêutrons pesaria em torno de um bilhão de toneladas aqui na Terra.
Os pulsares são estrelas de nêutrons jovens, girando a velocidades incríveis. Os
mais rápidos completam mil voltas em
torno de seu eixo em apenas um segundo. Ao "envelhecer", o pulsar vai diminuindo a sua taxa de rotação, até tornar-se quase estático.
Imagine um objeto não muito maior
do que o monte Everest, com uma massa
de 1 bilhão de toneladas e girando mil vezes por segundo. Realmente, é difícil
acreditar que algo assim possa existir.
Mas disso não temos dúvida, pois várias
observações astronômicas são explicadas por objetos com essas propriedades.
Mais uma dessas curvas inesperadas que
a natureza nos impõe, mas que aceitamos de bom grado. Devo acrescentar
que as estrelas de nêutrons foram propostas teoricamente três décadas antes
de sua descoberta, o que prova que a
nossa imaginação não é nada má.
O nome estrela de nêutrons vem do fato de esses objetos serem compostos
principalmente por nêutrons, as partículas companheiras dos prótons no núcleo
do átomo. De certa forma, estrelas de
nêutrons são núcleos atômicos gigantes,
os restos mortais de estrelas bem maiores do que o Sol que esgotaram o seu
combustível nuclear e sucumbiram à
própria implosão gravitacional, até encontrar uma nova estabilidade como
uma densa bola de nêutrons. Estrelas
ainda mais maciças não conseguem encontrar uma estabilidade na forma de estrelas de nêutrons e acabam a sua existência como buracos negros.
As duas descobertas recentes indicam
que ainda temos muito o que aprender
sobre esses objetos. Em uma delas, imagens do objeto RXJ1856.5-3754 (um nome nada romântico, diga-se de passagem) obtidas pelo telescópio de raios X
(isto é, capaz de analisar a radiação emitida por um objeto astronômico na faixa
do espectro dos raios X) Chandra mostram que ele tem um raio aproximado de
cinco quilômetros, ou seja, metade daquele típico das estrelas de nêutrons. Isso
tornaria a sua densidade ainda maior do
que a discutida acima, o que não é aceitável dentro dos modelos comuns.
Os astrofísicos propõem que esse objeto não seja uma estrela de nêutrons, mas
uma estrela composta por quarks, as
partículas fundamentais que compõem
os nêutrons e os prótons. O interessante
é que, na Terra, é impossível obter
quarks livres: eles sempre aparecem dentro de prótons e nêutrons.
A outra estrela estranha é conhecida
como 3C58. O que ela tem de peculiar é a
sua temperatura. O objeto 3C58 surgiu
dos restos de uma estrela que explodiu
em 1181 e, segundo os modelos atuais
que explicam como estrelas de nêutrons
se resfriam após a sua formação, deveria
ser bem mais quente do que o medido.
Uma explicação proposta é que o interior da estrela seja composto por partículas exóticas chamadas píons e káons,
que, até o presente, só haviam sido observadas em colisões altamente energéticas feitas em aceleradores de partículas.
Ainda não sabemos se essas duas estrelas são mesmo compostas por quarks e
outras partículas exóticas. Explicações
menos excêntricas podem, no final, ser
as corretas. Até termos as provas, eu prefiro apostar na criatividade da natureza e na sua capacidade de estar sempre a nos surpreender.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (Estados Unidos),
e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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