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MELHORES VERDADES
Sérgio Lima/Folha Imagem
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Pesquisador exibe vagem com grãos de soja transgênica na sede da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), em Brasília |
FILÓSOFO E ANTROPÓLOGO
FRANCÊS BRUNO LATOUR DIZ
EM ENTREVISTA QUE
CIENTISTAS NÃO DEVEM
FAZER DISTINÇÃO ENTRE FATO
E VALOR E QUE EXIGÊNCIA DE
PROVER DADOS SEM
INTERPRETÁ-LOS É CULPADA
PELO FRACASSO
DA CIÊNCIA E DO PODER
PÚBLICO NA DISCUSSÃO
DOS TRANSGÊNICOS
Marcelo Leite
colunista da Folha
Bruno Latour é uma figura difícil classificar. Não é
tarefa simples estabelecer se jamais foi moderno ou
se mergulhou direto de maio de 1968 nas águas da
pós-modernidade. Seus livros, vários deles editados no Brasil (como o recente "As Políticas da Natureza",
Edusc, R$ 55), costumam despertar ojeriza nos cientistas
naturais, que mesmo sem lê-los identificam no filósofo e
antropólogo francês um dos arcebispos da religião desconstrucionista. Se parassem para meditar sobre os seguidos tropeços públicos das biotecnologias, no entanto, esses pesquisadores teriam uma ou duas coisas a aprender
com Latour, que de arcebispo não tem nada.
Profeta, talvez. Latour escreveu livros incômodos, como
"Vida de Laboratório" e "Ciência em Ação", e parece comprazer-se em nunca dizer o que o interlocutor dele espera
ouvir. No congresso de estudos de ciência e tecnologia que
organizou em Paris no final de agosto, por exemplo, não
havia a habitual sessão de pôsteres em que estudantes ficam plantados ao pé dos mesmos. Resultado: mais de uma
centena de sessões espalhadas por dezenas de salas na tradicional escola de engenharia e no Liceu Saint Louis, ambos no bulevar Saint-Michel e vizinhos do Jardim de Luxemburgo. Com exceção de uma sessão solene na sede do
Senado da República, no Palácio de Luxemburgo, não
houve plenárias.
Os títulos das sessões se revelavam quase tão inusitados
quanto a cor laranja das bolsas distribuídas pelos organizadores. De robôs sociais à politização do software e da
cartografia das invenções científicas à etnografia do código aberto, havia de tudo, para todos. O tema central do
congresso conjunto da Sociedade para Estudos Sociais da
Ciência (SSSS, ou 4S) e da Associação Européia de Estudos
Sociais de Ciência (Easst) era, afinal, abrangente o bastante: "Provas públicas: Ciência, tecnologia e democracia".
Os transgênicos são um prato cheio para esse tema, pois
tornam manifesto que a pesquisa científica é uma prática
social, que ela mobiliza paixões e valores arraigados, que
nem tudo nela são razões objetivas e capturáveis por meio
de um desenho inteligente de experimentos. Trata-se da
primeira controvérsia científica globalizada, em realidade,
como percebeu Bruno Latour: "Há uma Guerra Mundial
dos OGMs [organismos geneticamente modificados]",
diz o francês, "que é interessante precisamente porque
não há mortes". Quando muito, uma erosão contínua da
confiança nos especialistas, tema que de resto já penetrou
até a sociologia mais comportada, ou nada francesa, de
um Anthony Giddens e de um Ulrich Beck.
Enganam-se, contudo, os cientistas naturais que virem
em Latour um inimigo. Ele tem perceptível simpatia pelas
agruras que estão vivendo com a querela dos OGMs, como deixa claro na entrevista a seguir. Segundo seu diagnóstico, para a irresolução dessa controvérsia contribuem
falhas tanto dos protagonistas da esfera pública quanto
dos pesquisadores, mas estes ao menos podem alegar que
estão submetidos a um duplo vínculo, como diz o intelectual francês, a uma exigência contraditória prover fatos
sem já interpretá-los: "Por favor, nada de nos dizer o que
devemos fazer, mas, se também puderem nos dizer o que
devemos fazer, seria bom".
Existe uma longa tradição de trânsito entre tais exigências, no que Latour chama de Teatro da Prova, do pêndulo
de Foucault ao anel de borracha de vedação do ônibus espacial Challenger que Richard Feynman mergulhou num
copo de água gelada: a necessidade, tanto para testemunhos políticos quanto para os científicos, de oferecer provas de uma maneira pública, convincente e dramática.
"Melhores verdades", enfim, como pediu na abertura. Pode-se discordar de Latour em muitas coisas, mas é difícil
deixar de perceber que suas idéias multicoloridas têm
mais de construtivas do que de desconstrucionistas, como
se pode ver na entrevista abaixo, concedida nos jardins da
Escola de Minas no dia 26 de agosto, horas antes da cerimônia oficial no Senado:
Um dos principais debates públicos sobre ciência, hoje, é o
dos organismos geneticamente modificados (OGMs), que
não progride. Cientistas estão dispostos a tomar parte no
debate, mas só como se estivessem entre pesquisadores.
Há de fato resistência ao diálogo, a encontrar um modo novo de participar do debate público?
Eles estão certos, num certo sentido, por estarem preocupados. Ainda não se formou uma alternativa para o
papel clássico do cientista de ensinar, fazer pesquisa ou
aconselhar políticos. Em outras palavras, quando há
hesitação sobre um novo regime, é melhor apegar-se
ao velho. Pelo menos tem a vantagem principal de proteger a sua autonomia, que de outro modo é com freqüência ameaçada por outros interesses. A alternativa
é muito difícil porque envolve não só mudar o modo
com que os cientistas fazem as coisas, mas também o
que se pede a eles que façam. É uma espécie de duplo
vínculo: de um lado, eles são chamados a dar testemunho como "experts" -e eu acho que pedir a um cientista que se torne um "expert" é uma espécie de traição
à missão da ciência-, e simultaneamente a nos dizer
quais são os fatos. Ou seja: por favor, nada de nos dizer
o que devemos fazer, mas, se também puder nos dizer
o que devemos fazer, seria bom. O que eu proponho
nesse livro ["As Políticas da Natureza"] é que nós organizemos essas posições com uma diferenciação entre
as habilidades de cientistas, políticos, economistas,
pessoal de mídia e assim por diante, e suas funções. Fazer uma distinção entre os domínios em que eles são
chamados a atuar e as suas habilidades, porque há um
mal-entendido aí. As pessoas acham que as habilidades
dos cientistas são também o seu domínio, que é separado do resto. Não, [na realidade] são as habilidades que
são diferentes, mas o domínio é o mesmo. É o mesmo
que construir uma casa, em que há carpinteiros, eletricistas, encanadores -eles não estão construindo várias casas diferentes, uma do encanador, outra do eletricista, mas trabalhando no mesmo prédio.
Eles estão contribuindo com habilidades diferentes para a
tarefa comum, é isso?
Sim. O problema é manter a diferença, e o temor dos
cientistas correto, no meu entender - é que eles não
querem ser confundidos com políticos, com advogados, porque não sabem como proceder. E estão certos!
As habilidades são diferentes, a do encanador não é a
mesma do eletricista. Mas o que é esse prédio que temos de construir? Essa é a questão a fazer. O prédio é o
"cosmos" comum, para usar a velha expressão grega.
No caso dos OGMs: política internacional, subsídios,
aspectos legais, ecologia da dispersão de genes, onde
encontrar experimentos que sejam públicos e convincentes, e assim por diante. É uma reunião muito grande. Assim, se eles dizem: "Ah, nós não queremos ter
nada a ver com a construção do mundo comum, não é
o nosso papel", aí estão errados, porque não estariam
querendo que sua ciência tenha sucesso. Mas, quando
dizem: "Sem uma alternativa, preferimos nos apegar a
nossa definição de autonomia", nesse caso eu penso
que eles estão certos.
Essas coisas às vezes se misturam. Os pesquisadores brasileiros não aceitam, por exemplo, que se modifiquem os poderes da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
[CTNBio], pois dizem que a decisão deve ser estritamente
técnica. Isso não é uma maneira de tentar circunscrever o
debate?
Isso é algo fácil de resolver, ainda que não o seja na prática. O fato é que a distinção está fazendo um corte no
lugar errado, separando os dois papéis que os cientistas
deveriam ter, mas lhes atribuindo ambos: a certeza sobre os fatos e a incerteza sobre os fatos. Com os valores
é a mesma coisa. O que eu proponho é um corte noutro
sentido. De fato, há duas funções a serem realizadas,
que são muito diferentes; a casa a ser construída de fato
é feita de coisas diversas. Uma é quais entidades têm de
ser levadas em conta. É preciso pensar sobre fluxo gênico, sobre leis, sobre isso e aquilo, sobre o número de
elementos que vão entrar na reunião, que devem ser
recrutados e aceitos sem serem simplificados. E há
também uma segunda tarefa: como ordenar, ou compor, esses diferentes institutos, num mundo comum. E
isso é algo completamente diferente da distinção entre
fato e valor. O modo com que os cientistas continuam
mantendo a distinção fato-valor é inteiramente contraproducente, porque ao proceder assim eles estão disparando contra o próprio pé.
Essa é uma casa de todos. Não é só uma questão de
saber se os genes fluem do campo de um agricultor para o de outro, mas se esse agricultor quer ter a Monsanto como seu patrão. Essa segunda questão é exatamente tão importante [quanto a primeira]: ela teria de ser
provada, demonstrada, deveria haver meios de ser decidida. Os OGMs são interessantes porque não são perigosos, precisamente porque quase não têm perigo
comprovado. É uma questão de soberania.
Mas por que, então, se tornaram uma questão tão grande,
se não são perigosos?
Por causa do que Michel Callon [do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, EUA] disse esta manhã:
antes dessa nova configuração, a saúde era a única maneira de criar uma dificuldade. As pessoas diziam: desde que não sejam perigosos, nós aceitamos. Deveria ser
permitido dizer: não é perigoso, não é um problema de
saúde, mas nós simplesmente não queremos! É uma
questão de soberania, qual o mundo que queremos ter.
É perfeitamente legítimo decidir assim o que não quer
dizer que seja a decisão correta. É legítimo, desde que as
outras funções dessa reunião tenham sido respeitadas,
o processo devido ["due process"]. Nesse caso, não há
absolutamente razão alguma para justificar sua imposição. Pessoalmente, não ligo a mínima. Acho os OGMs
perfeitamente OK. Mas deveria ser possível dizer: não é
perigoso, não é um problema de saúde, mas mesmo assim é uma questão de "cosmos", de arranjo, de paisagem, de beleza, de valores. Há muitas outras coisas. No
caso dos OGMs, a questão principal é o vínculo entre a
empresa e os plantadores, é uma questão de autoridade.
Quando se considera o debate sobre os OGMs entre a
Europa e os Estados Unidos, é claramente uma questão
de soberania. Os europeus dizem: nós aplicamos o
princípio da precaução. É nosso direito ser soberanos. E
os outros dizem, o que não é um mau argumento, tampouco: então é um obstáculo técnico ao livre comércio.
O Brasil também está nessa disputa, por outras razões.
Quando a soberania retorna, o debate se torna de novo
politicamente interessante, pois não se trata de saúde.
Quando a saúde está em causa, não se pode dizer que
se vai fazer alguma coisa que seja perigosa para a saúde.
OK, não é perigoso para a saúde o que fazemos, então?
Temos de decidir! É uma espécie de retomada da necessidade e de uma chance para a soberania. É um debate
muito interessante. Penso que há uma Guerra Mundial
dos OGMs, que é interessante precisamente porque não
há mortes. A disputa sobre algodão transgênico também é muito interessante, na Índia. De novo, diz-se que
é muito útil, mas é um algodão bom ou ruim? Se os
camponeses não forem ouvidos, não se pode decidir se
é bom ou ruim. Os cientistas estão certos em ficar desconfiados, porque não há ainda uma nova identidade.
O dever de pessoas como nós, da sociedade, é tentar encontrar essas alternativas.
O sr. está otimista quanto a isso? Há alguma saída para esse
impasse?
Bem, há 1.200 pessoas aqui [na conferência].
Mas como transformar todas essas discussões em algo institucional, em procedimentos? Essa é a questão.
Faz alguma diferença se somos 1.200, e não 12. Hoje temos defensores do princípio de precaução na Comissão
Européia. Faz alguma diferença? Pequena, mas toda diferença é pequena... 12.000 seria ainda melhor. Eu fico
impressionado com o fato de que aquilo que nós víamos agora está ficando óbvio para muitos, mas eles ainda não pensaram sobre isso. A maneira oficial de representar ciência ainda é de 60, 100, 200 anos atrás, porque
ninguém presta atenção aos cientistas. Quando os argumentos são apresentados aos cientistas calmamente,
fora das ruas, eles dizem que sim, claro, é isso mesmo. É
uma questão de bom senso.
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