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Micro/Macro
Ensinar ciência com poesia
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Conversei hoje com uma jornalista especializada em divulgação científica.
Ela me falou de sua preocupação com o ensino de ciência no Brasil, especialmente
nas escolas públicas. Me contou das dificuldades de encontrar professores. Professores formados adequadamente são uma
raridade maior ainda. Aqueles que não só
sejam formados, mas gostem de ciência
são heróis que precisam ser reconhecidos.
Sem recursos ou salário adequado, eles se
esforçam em trazer para as crianças um
pouco do que sabemos sobre o mundo.
Ela me falou também do avanço do criacionismo, em particular no Estado do Rio
de Janeiro, e de como ele parece estar intrinsecamente relacionado ao avanço das
igrejas evangélicas. Se ela não me disse isso, digo eu. Nos EUA, alguns Estados tentaram proibir o ensino da teoria da evolução de Darwin e o modelo do Big Bang em
cosmologia, afirmando que essas teorias
estão erradas e incompletas. Seus proponentes diziam que a perspectiva bíblica,
criada há milhares de anos, deveria ser ensinada em pé de igualdade com a ciência.
Não só em pé de igualdade, mas como uma
alternativa. Me pergunto o que uma criança hinduísta acha disso tudo. No mínimo,
que as religiões ocidentais são muito arrogantes, já que o deus delas toma precedência sobre os deuses de todas as outras.
Falamos do que pode ser feito para aliviar o problema. Constatamos o seguinte
fato: crianças são naturalmente curiosas
sobre o mundo. Todo pai ouve o filho ou filha perguntar por que o céu é azul, por que
a Lua não cai, como que a lagarta vira borboleta e a semente vira planta, por que o
mar tem ondas e os lagos não. Por que a
vovó morreu. Poucos pais têm respostas
para todas essas perguntas. Mas as crianças perguntam mesmo assim. "Sei lá, filho,
eu lá tenho cara de enciclopédia?" Quando
elas vão à escola, a curiosidade não diminui. Ao menos até elas chegarem à puberdade, quando existe uma transição de interesse: a curiosidade sobre o mundo se
transforma em curiosidade sobre o outro,
especialmente o outro do sexo oposto. Essa é a hora de ensinar biologia, antropologia, história, especialmente histórias sobre
heróis. Depois, as crianças viram adultos e
das duas uma: ou a curiosidade sobre o
mundo volta e elas lêem o que podem sobre ciência, ou a ciência se torna um bicho-papão, "o terror de minha adolescência",
coisa para chatos, nerds e crianças.
A desculpa é sempre a mesma: a falta de
recursos faz com que o ensino de qualidade seja impossível. Ciência vira coisa que
acontece só no quadro-negro, cheio de fatos e fórmulas que não parecem ter nada a
ver com o mundo real. Fazer demonstrações em sala de aula, experiências simples
que ilustrem os conceitos ensinados, é algo
aparentemente impossível. Mas na realidade não é. Sem dúvida, fica difícil demonstrar a difração de elétrons sem o
equipamento adequado. Mas isso só é relevante para alunos de física do terceiro ano.
Falo dos princípios da física básica, como o
fato de todos os corpos serem atraídos
igualmente pela gravidade terrestre.
Amarre uma pedra em um barbante e faça-a oscilar como um pêndulo. Conte
quanto tempo demora para a pedra completar cinco oscilações. Agora, troque por
outra pedra mais ou menos pesada e repita
a experiência, largando-a do mesmo ângulo. Conte novamente o tempo de cinco oscilações. Ele será o mesmo. Para se demonstrar esse princípio extremamente importante basta usar pedras e um pedaço de
barbante. Ou faça como Galileu e deixe as
duas pedras caírem da mesma altura. Pegue um pente de plástico e um monte de
pedacinhos de papel.
Esfregue o pente nos cabelos e aproxime-o dos pedacinhos de papel. O que ocorre?
Eles serão atraídos ao pente. Por quê? Porque a fricção no pente causa um déficit de
cargas, tornando-o atrativo. Matéria é feita
de cargas elétricas. Misture soda cáustica
com vinagre (bem pouquinho) e veja o que
acontece, explicando a diferença entre
substâncias ácidas e básicas.
Se não é equipamento, o que falta (fora
salário e formação decentes)? Falta encontrar poesia na natureza e nas explicações
que temos dela. O poeta Federico García
Lorca escreveu: "A ciência é mil vezes mais
lírica do que qualquer teogonia." Basta ver
a ciência com os olhos do poeta e fazer do
mistério a luz que ilumina a razão.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro
"O Fim da Terra e do Céu"
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