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Micro/Macro
Três visionários cósmicos
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Para uma pessoa vivendo no século
21, o fato de o Sol ser o centro do Sistema Solar e de a Terra e os outros planetas girarem à sua volta é tão conhecido
que é considerado óbvio. Porém, se perguntarmos como é que sabemos disso, as
coisas começam a ficar menos óbvias.
Afinal, o que vemos da superfície da Terra é o céu girando à nossa volta e não vice-versa: é o Sol que nasce no leste e se
põe no oeste todos os dias; são as estrelas
que parecem girar nos céus com o passar
da noite, o mesmo ocorrendo com os
planetas.
Mais ainda, como podemos afirmar
que a Terra gira em torno de seu eixo, se
não sentimos essa rotação? Por que ninguém fica tonto com ela?
Tenho certeza de que a maioria dos leitores sabe responder a essas perguntas.
Na Grécia Antiga, as coisas eram muito
diferentes. Em torno de 600 a.C., quando
os primeiros filósofos ocidentais começaram a explicar o funcionamento da natureza com argumentos racionais e não
ações divinas, não havia razão para acreditar que a Terra estivesse em movimento. Aliás, esse é um excelente exemplo de
como as aparências enganam.
Cerca de 150 anos se passaram até que
alguém propusesse que a Terra não era
imóvel, mas que girava em torno do centro do cosmo, juntamente com os demais planetas, a Lua e as estrelas. O interessante dessa idéia, proposta por Filolau
de Crotona em torno de 450 a.C., é que o
centro do cosmo não seria ocupado pelo
Sol, mas pelo "fogo central", uma espécie
de fornalha cósmica onde se originavam
todo o calor e toda a luz.
O Sol, que também girava em torno
desse centro, simplesmente redistribuía
a energia do fogo central pelo resto do
cosmo. Filolau era seguidor das idéias do
legendário Pitágoras, que havia fundado
uma tradição místico-racional baseada
na adoração dos números e de sua capacidade de descrever a beleza e harmonia
do mundo natural.
Algumas fontes atribuem a Pitágoras a
suposição de que a forma da Terra era esférica. Suas idéias, combinando geometria e aritmética na descrição da natureza, influenciaram alguns dos maiores
pensadores e cientistas da história, de
Platão a Kepler e mesmo Einstein.
Aparentemente, Filolau propôs o movimento da Terra para explicar a rotação
diurna dos céus: em vez de todos os planetas, o Sol e as estrelas girarem em torno da Terra, ele propôs que a Terra giraria em torno do fogo central. Essa rotação teria o mesmo efeito que percebemos ao girarmos em um carrossel: o
mundo gira em sentido contrário.
Claro, teria sido mais fácil supor que a
Terra gira em torno de si própria, mas isso não correspondia à inspiração mística
de Filolau, segundo a qual o centro do
cosmo era a morada de Zeus, a fonte de
toda a luz.
Cerca de cem anos depois de Filolau,
outro pensador grego, Heráclides do
Ponto, deu o pulo-do-gato: ele propôs
que a rotação diurna dos céus resultaria
da rotação da Terra em torno de si mesma. Heráclides propôs ainda que os planetas Mercúrio e Vênus girariam em torno do Sol, e não da Terra. Ou seja, ele
propôs um cosmo híbrido, com o Sol e
os outros planetas (na época Marte, Júpiter e Saturno) girando em torno da Terra, mas não Mercúrio e Vênus.
Contemporâneo de Aristóteles, Heráclides não foi levado a sério. Segundo
Aristóteles, a Terra deveria ser o centro
imóvel do cosmo. Afinal, diria ele, como
podemos provar que a Terra gira se,
quando atiramos uma pedra para cima
ela retorna às nossas mãos? Se a Terra girasse, seríamos carregados pela sua rotação, e a pedra cairia atrás de nós. Não se
conhecia então o conceito de inércia, que
diz que algo que está em movimento tende a permanecer em movimento. A pedra, quando atirada para cima, tem também um movimento horizontal causado
pela rotação da Terra, tal como nós.
O último dos visionários que menciono hoje é Aristarco de Samos, o homem
que, em torno de 300 a.C., pôs o Sol no
centro do cosmo, com a Terra e os outros
planetas girando à sua volta. Usando
geometria, Aristarco provou que a Lua
era bem menor do que a Terra, e a Terra
bem menor do que o Sol. Portanto, concluiu, seria muito mais natural supor que
o Sol estivesse no centro. Mais uma vez,
predominaram as idéias aristotélicas e
Aristarco foi esquecido. Pelo menos até o
século 16, quando o polonês Nicolau Copérnico, ciente das idéias de Aristarco,
pôs, de volta, o Sol no centro.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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