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Ciência em Dia
Obesidade e efeitos não-pretendidos
Marcelo Leite
editor de Ciência
A descoberta em setembro de 1999 de
uma molécula fundamental para a
absorção de gorduras no intestino delgado, a FATP4, ajudou a elevar as ações da
Millennium Pharmaceuticals, Inc. Afinal, ela trazia implícita a promessa de levar a uma droga capaz de controlar a
praga da obesidade.
Aumentou também o prestígio de seu
sócio na descoberta, Harvey Lodish, do
Instituto Whitehead do MIT (Instituto
de Tecnologia de Massachusetts). Ele é o
autor principal de um livro-texto de biologia molecular muito popular nos Estados Unidos e famoso também pelo trabalho fundamental de seu laboratório
sobre o hormônio eritropoetina, ou EPO
(que estimula a produção de glóbulos
vermelhos no sangue e se tornou uma
forma de doping entre atletas).
Os parceiros entraram logo com um
pedido de patente associado à descoberta, mas um trabalho publicado eletronicamente na segunda-feira passada pela
revista "Proceedings of the National
Academy of Sciences" (www.pnas.org)
ameaça pôr areia no que poderia se tornar uma máquina de fazer dinheiro: segundo estudo da Escola Médica da Universidade Washington (Missouri, EUA),
talvez seja má idéia bloquear a FATP4
para impedir a absorção de gordura.
A pesquisa do grupo de Jeffrey Miner
começou bem longe da molécula da Millennium e do MIT, com uma estranha e
rara mutação (defeito genético) de camundongos batizada como "wrfr". O
nome vem de "wrinkle-free" (livre de rugas ou dobras), por causa do aspecto dos
fetos de roedores afetados, que nasciam
com uma pele grossa e esticada. Há uma
doença genética semelhante -e também muito rara- em seres humanos, a
dermopatia restritiva.
Os roedores wrfr morrem logo depois
de nascer, pois têm grandes dificuldades
para respirar. Outro problema grave deles é que sua pele defeituosa pára de funcionar como uma barreira entre organismo e ambiente: deixa escapar mais água
do animal para fora do que deveria e deixa entrar substâncias tóxicas que precisaria barrar. Além disso, a mutação impede a produção normal de pêlos.
A pesquisa de Miner e colaboradores
tinha por objetivo localizar onde ocorria
a mutação, ou seja, qual o gene que ela
afetava. Descobriram que a wrfr correspondia à inserção de um retrotransposon (espécie de vírus genômico, sequências autônomas de DNA que conseguem
imiscuir-se entre trechos normais) no
gene Slc27a4 -precisamente o trecho
que contém a especificação genética necessária para a célula produzir a proteína
FATP4, aquela que faz o transporte de
gorduras pela parede do intestino.
Dito de outro modo: se um dia for desenvolvida uma droga contra obesidade
baseada na limitação da FATP4, ela corre
o risco de causar sérios danos à pele e aos
cabelos. OK, se os danos fossem muito
sérios, o medicamento nunca passaria
das fases 1 ou 2 dos testes clínicos e seria
arquivado antes de chegar ao mercado.
Pode não haver risco envolvido, mas o
caso serve para ilustrar como é precário
o raciocínio segundo o qual se torna cada
vez mais fácil encontrar, com a ferramenta da biologia molecular, remédios
que sejam verdadeiras balas de prata. O
genoma e o metabolismo não são programas dos quais se podem retirar módulos inteiros, mas algo mais semelhante
a ecossistemas, em que pequenas intervenções podem redundar em vastos efeitos não-pretendidos.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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