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Ciência em Dia
A vingança das loiras
Marcelo Leite
editor de Ciência
O boato só pode ter sido iniciado por
uma loira esperta, mas foi como
notícia que se espalhou pelo mundo há
duas semanas: pessoas com cabelos claros iriam desaparecer inteiramente da
face da Terra em 200 anos. Em algumas
versões, a fonte era uma pesquisa do
University College de Londres; noutras,
a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Quase todas as redes de TV dos Estados Unidos -CBS, ABC, CNN- caíram
na esparrela, além dos impagáveis tablóides britânicos. No Brasil, pelo menos
a revista "IstoÉ" e o "Jornal da Tarde"
deram crédito à notícia sensacional. O site Folha Online também publicou a história, na área que reproduz noticiário da
rede britânica BBC.
Era tudo mentira. Quando a farsa veio
à tona no dia 2, porém, as tinturas do
sensacionalismo já estavam derramadas,
e os redatores crédulos tiveram de
aguentar piadas e trocadilhos ainda mais
infames que os feitos por eles mesmos ou
o de cinco linhas atrás. A reportagem do
jornal "The Washington Post", por
exemplo, começava assim: "Foi um dia
negro no front da cor dos cabelos". E
aproveitava para dizer que a alegada carência de neurônios nas loiras aparentemente também se aplica aos jornalistas.
Um mínimo de familiaridade com genética de populações, mesmo sem incluir o domínio de seus meandros matemáticos, deixaria qualquer um desconfiado. Genes não desaparecem assim tão
rápido de uma população, mesmo sendo
recessivos. Se isso não ocorre nem com
aqueles trechos de DNA que conferem
enorme desvantagem para o portador,
por que faria desaparecer aquelas que os
homens -segundo a idiotia tradicional
no Ocidente- parecem preferir? Foi o
que Jonathan Rees, da Universidade de
Edimburgo (Escócia, Reino Unido), disse à BBC: "A frequência de loiros pode
cair, mas eles não vão desaparecer". Nem
por isso a notícia deixou de sair.
Curioso é notar que, embora a contrafação genética se aplicasse em princípio
também para os homens, toda a mídia
usou fotos de mulheres para ilustrar as
páginas. Constrangidos por uma definição de gênero mais estrita na língua portuguesa (em inglês, adjetivos servem para os dois gêneros), redatores brasileiros
partiram para o sexismo gramatical: "As
loiras estão em extinção", "Loiras, mais
uma espécie em extinção".
O University College entrou na história
por meio de Kathy Phillips (loira), que
não por acaso acaba de lançar "The Vogue Book of Blondes" (O Livro Vogue
dos/das Loiros/as). Em sua obra, Phillips
atribui a "descoberta" evolutiva ao geneticista e divulgador científico Steve Jones
(que aparentemente não se manifestou).
Já o envolvimento da OMS tem raízes
mais obscuras. Segundo disse a porta-voz Rebecca Harding ao "Post", a organização rastreou a informação até uma
agência alemã, que se baseara na revista
feminina "Allegra", que por sua vez citara um antropólogo da OMS em realidade
desconhecido na organização.
Harding disse que a OMS não se deu ao
trabalho de procurar órgãos de imprensa
para desfazer o mal-entendido: "Sinceramente, temos coisas melhores para dedicar nosso tempo". Mas a entidade publicou uma nota, para lá de irônica:
"Em resposta aos relatos recentes na
mídia citando um suposto estudo da
OMS predizendo a extinção do gene de
cabelos loiros naturais, a OMS deseja esclarecer que nunca conduziu pesquisa
sobre esse assunto. Tampouco, segundo
seu melhor conhecimento, lançou relatório algum predizendo que "loiros naturais estarão provavelmente extintos em
2202". A OMS não tem conhecimento de
como se originaram esses relatos, mas
gostaria de enfatizar que não tem opinião sobre a futura existência de loiros."
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