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Micro/Macro
Galáxias em uma xícara de café
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Certa vez, uma amiga compositora
mencionou que, para ela, poucos objetos naturais eram tão belos quanto
uma galáxia espiral. (Na época, eu achava os seus olhos, enormes, azuis, bem
mais belos. Mas essa é uma outra história.) Como estávamos em um restaurante jantando, resolvi impressioná-la, mostrando como fazer uma galáxia em uma
xícara de café: "Basta você pôr um pouco
de creme bem devagar sobre o café e
misturar delicadamente os dois fluidos
por alguns segundos. Em pouco tempo,
você verá uma galáxia espiral surgir na
sua xícara". O resultado, mesmo que imperfeito, foi convincente.
O interessante é que a brincadeira com
a xícara e os dois fluidos não está tão distante assim da realidade. Os modelos
que descrevem a formação de galáxias
espirais também são baseados na interação entre dois fluidos: um a matéria comum das estrelas e das nuvens de gás interestelar (principalmente hidrogênio e
hélio) e outro um fluido mais exótico, a
chamada matéria escura, cuja composição permanece ainda desconhecida.
O café, de menor viscosidade, faz o papel da matéria escura, e o creme, mais
viscoso, o da matéria estelar. Note que
até as cores são sugestivas do papel de cada um. A fricção entre o café e o creme e a
interna a cada fluido fazem o papel da
atração gravitacional entre os dois tipos
de matéria e, também, entre si.
O movimento de rotação induzido pela
colher na mistura do café com o creme
faz o papel do movimento de rotação
que ocorre durante o processo de formação da galáxia: no início, é conveniente
imaginar os dois tipos de matéria como
sendo duas esferas difusas de gás, misturadas e girando lentamente.
O movimento de rotação é contrabalançado pela atração gravitacional entre
os dois fluidos. Depois de algum tempo,
algumas regiões tornam-se mais densas
do que outras, exercendo então maior
atração gravitacional sobre a matéria à
sua volta. Essa instabilidade causa a contração das duas esferas de gás que, girando, vão dando forma à galáxia nascente.
A matéria escura, que, por definição, interage apenas gravitacionalmente com
outros tipos de matéria e com si própria,
mantém-se mais difusa do que a matéria
visível, que assume a forma espiralada.
A menos que o leitor seja como a minha avó, que tomava leite com uma gota
microscópica de café, o café com creme a
que me refiro tem muito mais café do
que creme (o popular "pingado"). Os
dois tipos de matéria que compõem a galáxia também aparecem em proporções
desiguais. A matéria comum, a que vemos em estrelas e nuvens de gás, representa menos de 10% da matéria total da
galáxia, dominada pela matéria escura. A
matéria comum, feita de átomos com
prótons, nêutrons e elétrons, tal como a
que nos compõe, é minoria absoluta: na
galáxia, domina o invisível aos olhos.
Imagino que o leitor esteja se perguntando: "Mas, se essa matéria escura é invisível, como sabemos que ela existe?
Afinal, o café é preto, mas visível". A detecção da matéria escura, ao menos até o momento, é feita indiretamente, através
de sua ação gravitacional sobre a matéria
visível da galáxia. Em particular, uma das
pistas vem da curva de rotação da galáxia, a medida do quão rápido suas diferentes partes giram em torno de seu centro, como um redemoinho cósmico.
Se a galáxia fosse composta apenas de
matéria visível, sua velocidade de rotação (ou melhor, a das estrelas em seus
braços espirais) deveria diminuir após
certa distância do centro.
Entretanto, o que se observa é que a velocidade permanece constante até as regiões mais externas da parte visível da
galáxia. Isso se deve à presença da matéria escura, que se estende bem além da
matéria visível, formando um halo invisível em torno da galáxia, como um véu.
Vários experimentos aqui na Terra estão tentando detectar as partículas de
matéria escura diretamente. Na medida
em que circulamos pelo espaço, elas vão
passando através da superfície, quase como fantasmas. Volta e meia, uma pode
se chocar com um detector, acusando a
sua presença. Mas, pelo jeito, teremos
tempo para muitos cafés com creme antes que ocorra alguma detecção.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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