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CIENTISTAS AMERICANOS MOSTRAM EM ESTUDO FEITO COM CERCA
DE 400 GERAÇÕES DE VERME QUE MUTAÇÕES NO CÓDIGO GENÉTICO
PODEM SER ATÉ DEZ VEZES MAIS FREQÜENTES QUE O PREVISTO
NO COMPASSO DA EVOLUÇÃO
Nature/Associated Press
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Imagem mostra nematóide
Caernorhabditis elegans
de idade avançada, com 12 dias
de vida, criado por cientistas
da Universidade Rutgers, nos EUA
Salvador Nogueira
da Reportagem Local
O conceito de metamorfose ambulante, concebido
pelo roqueiro Raul Seixas, acaba de ser elevado a
um novo patamar por geneticistas do Departamento de Biologia da Universidade de Indiana e
do Centro Hubbard para Estudos Genômicos da Universidade de New Hampshire, ambos nos Estados Unidos. Eles
mostraram que o DNA dos seres vivos sofre mutações
aleatórias com uma intensidade dez vezes maior que o esperado. Uma surpresa, justo quando os cientistas pensavam que sabiam quase tudo sobre os mecanismos que levam à evolução das espécies.
A descoberta é o preço de ver a biologia evolutiva florescer cada vez mais como ciência exata -e quem diria, um
século e meio atrás, que seria assim. Quando Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) estabeleceram o princípio da evolução das espécies pela seleção natural, em 1858, contaram apenas com observações
circunstanciais da natureza, alguma lógica e muita intuição, sem experimentos -não exatamente os melhores alicerces para um novo ramo científico.
Somente alguns anos depois, Gregor Mendel (1822-1884), um monge austríaco, publicaria seus resultados de
experimentos com ervilhas, jogando alguma luz sobre a
natureza da transmissão das características hereditárias
ao longo das gerações e estabelecendo a disciplina da genética -o que ajudava, mas não resolvia o problema. Ainda faltava identificar a natureza física do mecanismo de
codificação, armazenamento e propagação desses caracteres hereditários, o que culminou na decifração da estrutura do DNA -a molécula-guardiã dos genes-, por Francis Crick (1916-2004) e James Watson, 76, em 1953.
Depois disso, falar de evolução em termos experimentais ficou bem mais viável. E com os estudos genômicos,
então, começou a ser possível traçar uma verdadeira árvore genealógica das espécies, vendo qual era parente de
qual, em que nível, e há quanto tempo cada uma delas se
separou das outras na longa história de quase 4 bilhões de
anos da evolução da vida na Terra. Esse esforço, conhecido como filogenética, só virou realidade com a capacidade
de comparar as "letras" que compõem o código genético
de cada espécie e ver o quanto elas são diferentes entre si.
Sabe-se que a replicação do DNA no processo reprodutivo
não é perfeita -às vezes, letras são trocadas inadvertidamente, noutras um punhado de letras é inserido ou perdido no meio da duplicação. Esses processos, chamados de
mutações, são a base molecular da evolução. É o que permite que populações se modifiquem lentamente, até se separar em espécies distintas.
Supondo que as mudanças no DNA ocorressem mais ou
menos no mesmo ritmo ao longo do tempo, passaria a ser
possível estimar também quanto tempo um determinado
genoma teve de levar para se transformar em outro -as
mutações serviriam como uma espécie de relógio molecular. Só que, ao que parece, ele anda mais rápido do que antes especulavam os cientistas.
A novidade veio com um experimento meticuloso executado por Dee Denver e seus colegas. Eles criaram cerca
de 400 gerações do verme nematóide Caenorhabditis elegans em laboratório. Cuidaram deles com muito carinho.
Assim, até mesmo os que tinham mutações não muito
agradáveis conseguiram sobreviver. Depois, mediram a
quantidade de mutações ao longo do tempo. Surpresa,
surpresa: ela se mostrou dez vezes maior do que o esperado. As estimativas anteriores não haviam se baseado em
método tão criterioso, com observação sistemática de
longos trechos do DNA do bicho. Em vez disso, usavam
como termômetro mutações que causavam efeitos visíveis no verme para estimar sua taxa de ocorrência. Acabaram, com isso, subestimando o número para menos, ao
descartar trocas de letras genéticas que tivessem efeito
discreto ou inócuo no organismo, de acordo com o pesquisador americano.
"Acreditamos que a imensa maioria das estimativas anteriores de taxa de mutação para todas as espécies esteja
subestimada, em razão da natureza indireta e enviesada
das estratégias de pesquisa", disse Denver à Folha. "Para
estratégias baseadas no fenótipo [a aparência final do bicho], você provavelmente perde mutações com efeitos
menores, sutis. Para comparações filogenéticas de longa
duração, a seleção natural está provavelmente excluindo
muitas das mutações que chegaram a surgir."
Se muitos cientistas ficariam surpresos com a descoberta, o líder da pesquisa não teve a mesma reação. "Para ser
honesto, não fiquei surpreso que a taxa fosse maior do que
as estimativas anteriores", conta Denver. "Fizemos um
trabalho similar examinando a taxa de mutação de DNA
mitocondrial, em 2000, e descobrimos que a taxa também
era maior do que as estimativas anteriores. E a natureza
indireta das estratégias de avaliação anteriores também
apontava nessa direção."
Mais novidades
O estudo também trouxe outras surpresas. Os estudos feitos com base em fenótipo apontavam que a maioria das mutações consistia na perda de pedaços de DNA, as chamadas deleções. O novo estudo na
verdade mostra que as inserções são muito mais comuns.
Mas então por que elas aparecem em menor quantidade
em estudos de longa duração, como os baseados em filogenética? Denver e colegas sugerem que a seleção natural
favoreça, a longo prazo, genomas menores -há uma
pressão evolutiva no sentido de preservar os herdeiros das
deleções e excluir as linhagens dos herdeiros das inserções. Isso na prática quer dizer que os estudos feitos a partir de populações moldadas pela seleção natural ganham
um viés crescente ao longo do tempo, que mascara como
o DNA tende a mudar espontaneamente.
"É muito importante ter um entendimento direto e não-enviesado dos processos de mutação", diz Denver. "Comparando o completo espectro de mutações que observamos em nossas linhagens com o que é observado nos padrões naturais de variação no ambiente -que é afetado
pela seleção- podemos obter um entendimento de como
os dois diferem e melhor entender as interações entre mutações espontâneas e a ação da seleção natural sobre elas."
SOS genoma
E talvez o experimento de Denver aluda a
coisas ainda mais intrigantes. É o que sugerem Susan Rosenberg e P.J. Hastings, do Baylor College de Medicina, em
Houston, nos Estados Unidos. Comentando o artigo de
Denver e seus colegas no periódico científico britânico
"Nature" (www.nature.com), na mesma edição em que o
estudo original foi publicado, há cerca de dez dias, eles
propõem a hipótese de que a taxa de mutações não seja
sempre a mesma com o passar do tempo.
Em vez disso, ela aumentaria conforme o número de
mudanças prejudiciais no DNA começasse a se acumular,
sem que o efeito da seleção natural estivesse lá para excluí-las -como aconteceu no experimento de Denver, em que
o cuidado dos cientistas em preservar as linhagens permitiu que bichos menos aptos passassem à próxima geração
seu código genético prejudicado por mutações.
"Sugerimos que essas mutações provoquem respostas
de estresse celular que, por sua vez, causem mais mutações", escreveu a dupla. "Pelo menos dois casos de respostas a estresse que causam mutações foram documentados:
a chamada resposta de SOS a danos no DNA de bactérias e
a resposta de estresse geral bacteriana, controlada pela
proteína RpoS. Faz sentido que respostas ao estresse causem mutações; pode ser uma característica "selecionada"
que aumente a variação genética, aumentando com isso a
"evolubilidade" sob condições de estresse em que os organismos estão menos adaptados a seus ambientes."
A idéia lembra um pouco o conceito de equilíbrio pontuado, desenvolvido pelo paleontólogo americano Stephen J. Gould (1941-2002) para explicar as lacunas no registro fóssil entre as espécies. É mesmo engraçado; se as
mudanças evolutivas são lentas e graduais, por que não há
fósseis que representem uma infinidade de transições que
leve, por exemplo, dos dinossauros às aves? Por que os fósseis apresentam degraus tão acentuados na evolução? A
resposta geral é a de que os intervalos entre os degraus foram simplesmente perdidos com o tempo. Para Gould, a
explicação é que esses intervalos não existiam -as espécies mudavam em espasmos relativamente rápidos e apenas em determinados momentos.
A idéia de que a taxa de mutações pode variar, mesmo
numa escala pequena de tempo, parece ser compatível
com isso. "Nossa idéia é similar, mas ocorre numa escala
de tempo muito menor que a geológica e a das evidências
no registro fóssil, que foi o que inspirou Gould", disse à Folha Rosenberg. "Eu conversei com ele sobre idéias como
essa alguns anos atrás, e ele as achou bem razoáveis."
Já Denver não concorda com a hipótese de Rosenberg e
Hastings para explicar a taxa de mutações aumentada. "É
um ângulo interessante sobre as nossas descobertas. Mas
achamos que esse não é o caso, porque, quando analisamos as nossas linhagens do ponto de vista de adaptabilidade ao longo das gerações -a 50ª, a 100ª, a 150ª etc.-, não
vimos aceleração na redução de adaptabilidade, é uma coisa bem linear. De acordo com a visão de Rosenberg e Hastings, deveríamos ter visto uma aceleração no declínio da
adaptabilidade conforme as gerações aumentavam."
Embora hoje o estudo da biologia evolutiva tenha bases
muito mais sólidas para estudo e verificação do que as que
elevaram Darwin e Wallace à grandeza, em meados do século 19, a evolução, ao que parece, faz questão de ter sempre um ás na manga. E não pretende descartá-lo tão cedo.
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