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Micro/Macro
Em busca da lula gigante: um mito que virou realidade
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Em 1851, Herman Melville publicou
"Moby Dick", após passar três anos a
bordo de uma baleeira. A gigantesca baleia
não foi o único monstro a aparecer em
suas páginas. Melville narra um "fenômeno fantástico, uma enorme massa com
inúmeros braços irradiando de seu centro,
torcendo-se e enrolando-se como em um
ninho de serpentes".
Na mesma época, o zoólogo dinamarquês Johannes Steenstrup declarou que
uma besta encontrada no estreito de Resund e presenteada ao rei era, na verdade,
um cefalópode, em particular uma lula
enorme. Em uma palestra, Steenstrup
mostrou uma mandíbula em forma de bico de uma lula gigante encontrada morta
na Islândia. Conforme escreveu Richard
Ellis em "Em Busca da Lula Gigante", o
achado de Steenstrup "marcou a transição
da lula gigante de mito à realidade científica". Essa descoberta inspirou Júlio Verne a
incluir uma lula gigante em seu famoso
"20.000 Léguas Submarinas".
Lendas de monstros marinhos são encontradas por todo o mundo. Até Homero,
na "Odisséia", descreve um monstro chamado "scylla", "com doze pernas, todas se
torcendo, saindo de seis longos pescoços,
uma cabeça horrível em cada um deles". O
caso da lula gigante é interessante porque
sabe-se hoje que ela não é uma lenda; vários espécimes foram encontrados mortos
em praias do mundo inteiro, da Nova Zelândia à Noruega; pedaços foram resgatados dentro de estômagos de baleia; tentáculos de até dez metros de comprimento
foram pescados. O único problema é que
jamais um espécime foi capturado vivo.
Apesar de ser real, a lula gigante é menos
conhecida que os dinossauros. Vários pescadores contam de seus encontros com os
"monstros", com olhos do tamanho de cabeças humanas. Mas, misteriosamente, a
lula gigante, ou Architeuthis, consegue
sempre escapar de seus caçadores.
Mesmo que os oceanos cubram quase
75% da superfície terrestre -só o oceano
Pacífico é maior do que todos os continentes juntos-, o mundo submarino é menos
explorado do que o Universo. Estima-se
que os oceanos contenham mais de dez
milhões de espécies animais, das quais conhecemos menos da metade.
A lula gigante é um desafio para os biólogos marinhos; a competição para encontrar um espécime vivo é ferrenha e não
muito amistosa. O jornalista David Grann,
em artigo recente para a revista "The New
Yorker", conta a sua aventura junto a um
caçador de lulas gigantes, Steve O'Shea.
Seu plano é original: como lulas produzem
milhares de ovos, é mais fácil capturar uma
lula-bebê e acompanhar o seu crescimento
em um aquário especial.
O aspecto mais fascinante da história é a
determinação de O'Shea. Ele é capaz de
sair sozinho em alto-mar e passar dias praticamente sem dormir jogando suas redes
e armadilhas. Grann conta de sua obstinação implacável, em meio a tempestades e
ondas de cinco metros, com a lanterna ligada às quatro da manhã em céu sem Lua,
examinando e reexaminando o conteúdo
de sua rede. Na terceira noite, O'Shea viu
em sua rede o que lhe pareceu ser o exemplar que tanto queria. Mas, no esforço de
esvaziá-la, a lula-bebê acabou escapando
para o mar. Mais uma missão frustrada.
Mas O'Shea não desistiu. E é justamente
essa determinação que leva ao sucesso em
pesquisa. Não existem garantias, apenas fé
de que o objetivo será alcançado. O mais
importante é a persistência, é poder visualizar a lula crescendo no tanque, a equação
resolvida, o enigma explicado. A imagem
do cientista em meio ao oceano escuro,
procurando por um animal meio mito
meio realidade é pura poesia. A poesia escrita pelo nosso desejo insaciável de querer
saber sempre mais.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro
"O Fim da Terra e do Céu"
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