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Ciência em dia
Dados viciados
Marcelo Leite
colunista da Folha
Se alguém ainda alimentava a ilusão de
que o conhecimento científico pode dirimir querelas públicas, sobretudo no
campo ambiental, com o facho potente da
objetividade, a semana que passou trouxe
dois exemplos eloqüentes em contrário: a
polêmica sobre o projeto do governo federal de estipular concessões para a exploração de florestas e a bordoada crítica que o
norte-americano Jeffrey Sachs desferiu
contra o Consenso de Copenhague armado pelo dinamarquês Bjorn Lomborg.
Os dois casos sugerem, cada um à sua
maneira, que quem aposta na confusão do
debate público, em assuntos ideologicamente carregados, tem boas chances de ganhar a parada. Turvar a água continua a ser
uma forma eficaz de impedir a visão do
que está no fundo. Dito de outro modo, a
falta de clareza ajuda a manter o status
quo.
Veja o caso do projeto das concessões
florestais na Amazônia. Na internet e na
imprensa internacional, chegou a ser rotulado como privatização da mata. Só quem
não acompanha a questão amazônica pode concluir que tal proposta seja "entreguista" e tenha por objetivo legalizar o desmatamento. O que ela busca fazer é disciplinar a extração de madeira, hoje selvagem e predatória, estipulando que nas
áreas de concessão os madeireiros poderão retirar apenas 3% das árvores e voltar
só depois de 30 anos.
Se o esquema bem-intencionado pode
ou vai funcionar é outra história. Há muita
gente séria que vê problemas na idéia. Por
exemplo, ambientalistas de quatro costados para os quais o governo federal está
pondo ênfase demais nos benefícios previstos, desconsiderando dificuldades previsíveis de implantação e relegando outras
vias para gerar renda sem derrubar árvores, como a valorização ("precificação")
dos serviços ambientais prestados pela floresta -entre eles a fixação de biomassa
que, emitida para a atmosfera na forma de
carbono, agravaria o efeito estufa. Quem
defende alternativas deveria se sentir obrigado, porém, a cotejar ponto por ponto as
vantagens e a exeqüibilidade de um e de
outro esquema, se de fato rezasse pelo credo da racionalidade objetiva.
Algo similar ocorreu com o espetáculo
montado na capital dinamarquesa, em
maio passado, por Bjorn Lomborg, mais
conhecido pelo best-seller "O Ambientalista Cético" (lançado no Brasil pela Editora Campus). Com apoio da revista "The
Economist", ele reuniu oito economistas
para avaliar quais seriam os projetos mais
eficazes para aplicar US$ 50 bilhões, em
cinco anos, na resolução de problemas como Aids, malária e mudança climática.
Não deu outra: notas altas para o investimento no combate a doenças dos pobres,
notas baixas para medidas contra o aquecimento global. Como havia três Prêmios
Nobel no júri, a conclusão foi noticiada pelo mundo afora como demonstração da futilidade de despejar dinheiro na questão
climática. George W. Bush não deve ter lido, mas gostou.
Agora, três meses depois, entra em cena
o também economista Sachs, e para deitar
água fria na fervura conservadora. Segundo o artigo do diretor do Instituto da Terra
da Universidade Columbia na revista "Nature" de quinta-feira, a escolha da cifra de
US$ 50 bilhões só poderia dar nisso. Parece
muito, mas é pouco dinheiro -só 0,03%
da renda anual gerada em países ricos. Não
dá nem para começar a enfrentar a questão
da mudança climática.
Em outras palavras, que não as de Sachs:
os dados de Lomborg estavam viciados.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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