|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ciência em Dia
Botucatu, Bauru e a globalização meia-bomba
Marcelo Leite
editor de Ciência
Foi duro conter um impulso de irritação ao ler aquele despacho da agência de notícias: "LONDRES (Reuters) - Gêmeos brasileiros idênticos, exceto por um defeito de nascença, ajudaram cientistas americanos e britânicos a identificar um gene falho que causa uma forma
hereditária de lábio e palato fendidos" (problema conhecido como lábio leporino, porque a fenda lembra algo da feição de uma lebre).
Como havia editado no mesmo dia reportagem de Reinaldo José Lopes sobre a
pesquisa, sabia que brasileiros tinham
contribuído com algo mais do que uma
malformação facial para o trabalho, publicado na seção de cartas da revista
científica americana "Nature Genetics"
(www.nature.com/ng). Entre os 26 autores do artigo havia dois da Unesp de
Botucatu (Renata Ferreira de Lima e Danilo Moretti-Ferreira) e um da USP de
Bauru (Antonio Richieri-Costa). Estiveram ainda envolvidos no projeto de 17
anos outros pesquisadores de mais três
países, Alemanha, Colômbia e França,
igualmente omitidos pela Reuters.
É verdade que, em apenas 36 linhas, seria impraticável a agência relacionar todos os autores. Tampouco a reportagem
da Folha o havia feito, limitando-se a registrar a colaboração com americanos e
europeus -com isso omitindo, também
ela, a participação dos colombianos.
Além disso, é correto que o autor principal (o último da lista, segundo o costume científico), Jeffrey Murray, e os primeiros nomes (daqueles que fazem o
trabalho mais pesado) são todos ou dos
EUA -Iowa, para ser preciso- ou do
Reino Unido. Renata Ferreira de Lima é
a primeira não-anglo-saxã a aparecer,
num ainda destacado oitavo lugar.
Tanto Moretti-Ferreira quanto Murray, consultados por esta coluna, explicaram a omissão com a tendência de órgãos de imprensa de privilegiar o aspecto
ou conexão local das notícias. Uma regra
tão trivial quanto legítima da técnica jornalística, diga-se. Embora não tenha registrado a procedência dos autores no título, a reportagem da Folha o fez implicitamente no sobretítulo (ou linha-fina):
"Cientistas da USP e da Unesp ajudam a
achar DNA ligado a defeito facial".
Esse viés pode explicar, mas não justifica, a omissão da Reuters -que está longe de ser um órgão de impacto local. Afinal, os brasileiros não contribuíram só
com os gêmeos atendidos no Hospital de
Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais de Bauru, mas com algo mais sutil e valioso: o lampejo de que sua situação -gêmeos geneticamente idênticos
(mesma sequência de DNA), mas com
fenótipos diversos (um com lábio fendido, outro normal)- poderia acelerar a
localização do gene afetado.
Como disse Murray à coluna, foi um
dos itens inéditos do trabalho: "As contribuições dos cientistas brasileiros, que
reconheceram como poderiam ser importantes esses gêmeos, foram críticas
para encontrar o gene no momento em
que o fizemos (acabaríamos por encontrá-lo algum dia, sem eles, mas talvez não
antes de um ano, no mínimo). Além disso, o valor dos gêmeos é aumentado pelo
fato de terem ensinado que podemos
empregar esses gêmeos idênticos "não-idênticos" para achar outras doenças
com um componente genético".
Arriscaria dizer que há algo mais nessa
omissão. Ela atesta nossa incapacidade
(dos jornalistas, quero dizer) de pensar
nalguma forma de globalização que não
perpetue a subordinação de quem fala
inglês com sotaque a algum "boss" gringo -mesmo que ele seja da periferia
científica norte-americana.
Está na hora de começar a pensar que,
sem a sacada de Botucatu e Bauru, a turma de Iowa talvez nunca tivesse publicado seu trabalho na "Nature Genetics".
Texto Anterior: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: O grande dilema de Einstein Próximo Texto: saiba + Índice
|