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Micro/Macro
Einstein, Picasso e a quarta dimensão
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
No início do século 20, uma revolução ocorreu simultaneamente nas
artes e nas ciências físicas. De um lado,
Pablo Picasso destruiu a rigidez plástica
na pintura, tentando, com o cubismo,
expandir as possibilidades de representação de imagens tridimensionais em telas bidimensionais. Aproximadamente
na mesma época, Albert Einstein destruiu a rigidez da concepção newtoniana
de espaço e tempo, mostrando que medidas de distância e de tempo não são absolutas, independentes do estado de movimento de quem as faz, mas, sim, dependentes do movimento relativo entre
observadores. Dada a proximidade nas
datas (o quadro de Picasso "Les Demoiselles D'Avignon" é de 1907, e a teoria da
relatividade especial de Einstein é de
1905), é natural se conjecturar que houve
uma influência da física nas artes.
Em recente livro, "Einstein, Picasso:
Espaço, Tempo e a Beleza que Causa
Confusão", Arthur I. Miller revisita esse
tema, oferecendo uma explicação muito
plausível para a aparente coincidência de
datas. Segundo Miller, não houve, na
verdade, uma influência direta entre os
trabalhos de Einstein e de Picasso; ambos são partes de uma profunda transformação cultural que já ocorria no princípio do século, cujo foco maior de atenção era justamente o questionamento da
natureza do espaço e da relação entre a
realidade e sua percepção sensorial.
Picasso tentou representar a totalidade
de uma imagem, vista ao mesmo tempo
de vários ângulos diferentes, como se o
observador existisse em uma dimensão a
mais, a quarta dimensão. Explico: imagine uma bola flutuando no espaço. Vemos a superfície dessa bola que, como
toda superfície, tem duas dimensões.
Mas nós sabemos que essa superfície é
curva e não plana, como, por exemplo, o
topo de uma mesa. Por quê? Porque vemos a bola em três dimensões. Sabemos
que ela tem também um raio que define
a distância entre a superfície da bola e o
seu centro. Caso o raio variasse de ponto
a ponto, isto é, se a distância entre os
pontos na superfície e o centro não fosse
fixa, a bola teria uma aspecto distorcido.
Imaginemos, então, uma bola distorcida, como a superfície da Lua, repleta de
crateras e montanhas, ou uma cabeça.
De nossa perspectiva tridimensional, jamais poderemos captar a totalidade da
bola: veremos apenas a parte que se encontra voltada para nós, e não a face
oculta. Com o cubismo, Picasso tentou
representar todos os aspectos de uma superfície, como se pudéssemos ver a frente e as costas de uma pessoa ao mesmo
tempo, transformando-nos em observadores de uma quarta dimensão espacial.
Já Einstein, em sua teoria da relatividade especial, mostrou que observadores
com um movimento relativo entre si, por
exemplo, uma pessoa em pé numa calçada e outra passando de carro, obterão resultados diferentes ao medirem distâncias e intervalos de tempo. Se a pessoa
em pé na calçada estiver segurando uma
régua de um metro na horizontal (medida por ela), a pessoa passando de carro
verá essa régua um pouco mais curta.
Não percebemos isso, pois esses efeitos
só se tornam importantes a velocidades
próximas da velocidade da luz, de 300
mil quilômetros por segundo. O oposto
ocorre com o tempo: para o observador
passando de carro, um relógio na mão da
pessoa na calçada bate mais devagar, ou
seja, a passagem do tempo dilata. Einstein concluiu que tempo e espaço são
manifestações conjuntas da realidade física. Poucos anos mais tarde, ficou claro
que a teoria da relatividade trata o tempo
como uma dimensão a mais, em pé de
igualdade com as três espaciais.
Picasso e Einstein foram influenciados
pelo matemático francês Henri Poincaré
que, no início do século, propôs que a
geometria descrevendo a realidade não
era única. Picasso, através de seu amigo
Maurice Princet, e Einstein, ao ler o livro
"Ciência e Hipótese", publicado em alemão em 1904. Para ambos, a função da
ciência e da arte é revelar a essência da
realidade que se esconde por trás da limitada percepção sensorial. Mesmo que a
quarta dimensão de Picasso seja diferente da de Einstein, nossa visão de mundo
foi profundamente mudada por ambas.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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