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Ciência em Dia
O fim da Natureza Humana
Marcelo Leite
editor de Ciência
Há pouco mais de dois meses, prometi voltar ao último livro do polêmico pensador conservador americano
Francis Fukuyama, aquele que anunciara uma década antes o fim da História
com agá maiúsculo. A nova obra é "Our
Posthuman Future" (Nosso Futuro Pós-Humano, editora Farrar, Straus and Giroux, 256 págs. US$ 25), um manifesto
em defesa da natureza humana.
A primeira coisa que chama a atenção é
a coincidência de argumentos no livro de
Fukuyama e no de Jürgen Habermas, comentado na coluna de 29 de setembro,
apesar das diferenças abissais entre os
dois filósofos (muitos diriam que Habermas é conservador, mas não da forma
como Fukuyama o é). A leitura dos livros
revela que a coincidência é superficial,
mas o simples fato de existir -ainda que
só no plano formal- impressiona.
Ambos os autores acreditam que as
biotecnologias, em particular a engenharia genética, têm ou logo terão o poder de
fazer alterações no organismo humano
com consequências para a igualdade entre os homens. Ao ter certas características escolhidas no plano dos genes por
outrem, o ser humano engenheirado viria ao mundo numa condição moral "sui
generis", literalmente: diferiria de todos
os indivíduos da espécie, cujas dotações
genéticas são frutos do acaso.
Assim o formula Fukuyama, na típica
prosa do conservador norte-americano:
"A igualdade política entronizada na Declaração da Independência repousa sobre o fato empírico da igualdade humana natural. Variamos grandemente como indivíduos e pela cultura, mas partilhamos uma humanidade comum que
permite a cada ser humano comunicar-se e estabelecer uma relação moral potencialmente com todos os outros seres
humanos no planeta".
O melhor do livro desigual de Fukuyama é sua idéia de que a biotecnologia
nem precisa entregar a prometida reengenharia genética do ser humano para
que sua natureza se veja ameaçada. Isso
já estaria ocorrendo por meio da neurofarmacologia, por exemplo, e das admiráveis novas drogas como Prozac e Ritalin. Para ele, essa revolução aqui e agora
anteciparia três tendências abomináveis
que presume na engenharia genética.
A primeira é um desejo das pessoas comuns de medicalizar/naturalizar tanto
quanto possível seu próprio comportamento (e com isso livrar-se da responsabilidade individual). A segunda, a pressão de interesses econômicos da indústria fármaco-biotecnológica e do setor de
serviços sociomédicos (profissionais de
saúde, professores, psicólogos etc.), para
os quais seria mais fácil utilizar atalhos
biológicos para abordar nos desvios de
comportamento. Por fim, a tendência de
expandir o domínio terapêutico, incluindo um número cada vez maior de condições entre as patológicas.
Tudo isso, para Fukuyama, já está afetando a forma como as pessoas se relacionam entre si e até mesmo como elas
encaram a validade e a extensão dos direitos humanos. Ele tem alguma razão.
Nem por isso ele e Habermas estão dizendo a mesma coisa. Ocorre que, para o
filósofo alemão, o nascimento biológico
apenas equipa a pessoa com as faculdades necessárias para adentrar o universo
da linguagem e da sociedade, onde ocorre a verdadeira ação. Pode-se dizer que,
desse ponto de vista, a natureza humana
é algo que se realiza historicamente.
Já Fukuyama reza pelo catecismo sociobiológico, que concebe a Natureza
Humana (com ene e agá maiúsculos) como uma essência moral, que cumpre
preservar da ameaça de corrupção representada pelas biotecnologias.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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