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Micro/Macro
Perplexidade quântica
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Se existe uma palavra que define a
reação das pessoas que encontram
pela primeira vez as propriedades do
mundo quântico, deve ser "perplexidade". A bem da verdade, essa perplexidade não ocorre só num primeiro encontro. Mesmo físicos treinados continuam
a senti-la no decorrer de suas carreiras.
O grande físico dinamarquês Niels
Bohr, um dos arquitetos da mecânica
quântica, disse em 1927 que, "se alguém
não se chocar com a teoria quântica, é
porque não a entendeu". Já o irreverente
físico americano Richard Feynman, quatro décadas mais tarde, escreveu que
"ninguém entende a teoria quântica". O
mundo do muito pequeno, dos átomos e
das partículas subatômicas como os elétrons e prótons, é mesmo bizarro.
Em 19 de outubro passado, escrevi sobre o assunto, explorando um pouco as
diferenças entre o mundo clássico -o
mundo do nosso dia-a-dia- e o mundo
quântico. Uma leitora me pediu para
voltar ao tema, discutindo uma questão
que imagino esteja na mente de muita
gente: se o mundo quântico é assim tão
estranho, por que não percebemos nenhum desses efeitos em nossas vidas?
Em outras palavras, onde fica a linha divisória entre o mundo com que estamos
acostumados e o mundo estranho dos
efeitos quânticos?
Antes de tocar no assunto, vale revisitar um efeito quântico importante, só para contrastar com a realidade que conhecemos. Os planetas giram em suas órbitas ao redor do Sol. Como conhecemos a
força que o Sol e os planetas exercem uns
sobre os outros -a da gravidade-, podemos escrever equações que nos dizem
onde os planetas estarão no futuro com
enorme precisão. Elétrons "giram" ao
redor do núcleo atômico (as aspas ficarão claras em breve). No entanto, não
podemos dizer com precisão onde um
elétron estará em um determinado instante. Isso porque não podemos visualizá-lo como uma bola de bilhar (um miniplaneta). Temos de imaginá-lo como
uma entidade que é parte bola de bilhar e
parte onda, sem uma posição determinada.
É melhor dizer que o elétron se espalha
ao redor do núcleo, estando um pouco
mais aqui ou ali. Se medirmos a sua posição diversas vezes, a cada vez obteremos
um resultado diferente. Podemos apenas
dizer qual a probabilidade de encontrar
o elétron aqui ou ali. No mundo quântico, a precisão familiar da realidade clássica se esvai em probabilidades.
Essa propriedade é consequência do
chamado Princípio da Incerteza, proposto por Werner Heisenberg quando
ele era assistente de Bohr. Segundo o
princípio, existe um limite máximo na
precisão com que a posição e a velocidade de uma partícula, como o elétron, podem ser medidas conjuntamente.
Medir significa perturbar. Quando o
objeto é muito pequeno, o ato de medir
acaba por deslocá-lo de sua posição, provocando um erro na medida. Essa é a razão pela qual não vemos efeitos quânticos na nossa realidade. (Existem exceções, como os superfluidos, mas isso fica
para outro dia.) Os objetos à nossa volta
são grandes demais para que seus efeitos
quânticos possam ser percebidos.
Mas onde fica a linha divisória entre o
mundo clássico e o mundo quântico? Na
verdade, ela não existe. Existem apenas
efeitos quânticos que são tão pequenos
no mundo clássico que passam despercebidos. Eis alguns exemplos, de um elétron até uma ervilha: a incerteza na velocidade de um elétron em escalas subatômicas (um centésimo de bilionésimo de
metro, 10-11m) é de 10 milhões de metros
por segundo, ou seja, relativamente alta;
a de um átomo, de dez metros por segundo; a de uma macromolécula orgânica,
um centésimo de milésimo de metro por
segundo; a de um grão de pólen, um décimo de trilionésimo de metro por segundo (10-13 m/s, ou seja, quase nenhuma); a de uma ervilha, um trilionésimo
de trilionésimo de metro por segundo,
10-24 m/s, completamente desprezível.
(Números aproximados.)
Conclusão: ao passar do muito pequeno ao muito grande, a incerteza intrínseca ao mundo quântico se torna desprezível e a realidade deixa de causar tanta
perplexidade.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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