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Micro/Macro
Sobre o método
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
É comum dizer que a ciência busca a
verdade. Mas que verdade é essa? O
próprio sentido da palavra verdade pode
ser discutido: ela é uma daquelas palavras que são mais fáceis de entender do
que de explicar. No "Dicionário Aurélio", a primeira definição de verdade é
"conformidade com o real". Portanto, a
definição de verdade depende do que
chamamos de real. Antes de aceitarmos
conjuntamente o que é verdade, precisamos concordar com o que seja o real.
Uma opção é definir como real aquilo
que percebemos com os nossos sentidos
e que pode ser medido. (Aqui se incluem
medidas obtidas com instrumentos que
ampliam os nossos limitados sentidos,
como telescópios, microscópios, amperímetros etc.). A grande vantagem dessa
definição é a sua simplicidade: realidade
é o conjunto de todas as coisas reais. E
verdade é o que está de acordo com essa
realidade concreta, mensurável.
Mas essa definição tem alguns problemas. Um deles é com a matemática. Se
peço para o leitor imaginar um círculo,
imediatamente a figura geométrica ganha vida em sua mente. Mas ela não foi
vista, cheirada ou tocada por ninguém.
Será menos real por isso? Basear a definição do real no que é perceptível, no que
vem exclusivamente de fora para dentro,
talvez não seja uma idéia tão boa. Aliás,
idéias apresentam outra dificuldade.
Apesar de não serem percebidas pelos
nossos sentidos, elas não deixam de ser
reais. O mesmo com sentimentos. Ninguém vê ou ouve saudades. Mas o sentimento existe. Real não significa necessariamente o que é concreto.
Para simplificar as coisas, podemos separar a definição de real em duas partes:
o real objetivo e o subjetivo. Uma cadeira
faz parte de uma realidade objetiva: qualquer pessoa sã (outro problema, definir
sanidade e sua relação com o que é ou
não real) vê a mesma cadeira. (Por não-sã defino aquelas que não acham que a
cadeira que 1 milhão de pessoas vêem seja uma cadeira.) A idéia de círculo, mesmo que existente apenas na cabeça das
pessoas, faz parte do real objetivo: as pessoas concordam que um círculo é uma
figura cujo centro é equidistante de todos os seus pontos. Existe uma relação
matemática única para definir a idéia de
círculo, o que o torna parte da realidade
objetiva.
Já o real subjetivo não é mensurável de
forma única. Eis um exemplo. Um grupo
de brasileiros mora no exterior há dez
anos. Alguns sentem saudades e sabem
disso, outros não. O sentimento é real.
Mas ele não tem uma realidade objetiva,
pois não existe um critério único para a
sua medida. A intensidade da emoção é
mensurável (talvez usando um aparelho
de ressonância magnética funcional seja
até possível localizar a região do cérebro
responsável pela saudade). Mas ela é
subjetiva; passar dez anos fora pode ou
não causar saudades em brasileiros. No
entanto, todos eles irão concordar com o
que seja um círculo com raio de um metro.
As ciências naturais tratam da descrição da realidade objetiva. O que não tem
existência concreta pode ser descrito por
relações matemáticas únicas. Exemplos
não incluem apenas objetos geométricos, como o círculo ou o triângulo. Leis
físicas também fazem parte dessa realidade objetiva. Quando se diz que a energia em processos físicos é conservada,
podendo ser transformada, mas não
criada, está se falando de algo mensurável, a quantidade de energia de um sistema antes e depois de um determinado fenômeno. Por exemplo, um carro antes e
depois de uma viagem, onde a energia
química armazenada na gasolina é transformada em movimento e calor devido
ao atrito com o ar, com o chão e nos seus
mecanismos. Essas leis físicas são a melhor aproximação que a ciência pode
oferecer da "verdade".
Por que as aspas? Porque nada pode ser
afirmado com absoluta certeza. Não
existem medidas absolutamente precisas, incluindo aquelas que medem a
quantidade total de energia de um sistema antes e depois de um fenômeno qualquer. Pode-se apenas afirmar que, dentro da precisão existente, essa ou aquela
lei é válida. Portanto, toda lei física é apenas aproximadamente válida. Isso torna
a verdade intrinsecamente humana: afinal, ela avança lado a lado conosco, tornando-se cada vez mais, mas nunca absolutamente, verdadeira.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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