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Micro/Macro
Fé cega e ciência amolada
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Outro dia, um caro leitor me enviou
uma mensagem com uma pergunta
que deve ter ocorrido a muitos outros.
Ele disse algo como (aqui parafraseio,
mantendo o significado, mas não o conteúdo original): "Você escreveu que nossos corpos são atravessados a cada segundo por bilhões de neutrinos e outras
partículas invisíveis, sem que possamos
percebê-lo. Para aqueles que não têm
acesso à qualquer comprovação concreta dessa afirmativa em um laboratório,
ela pode parecer tão fantástica quanto se
alguém disser que vê Jesus em seu espelho quando se barbeia todas as manhãs."
Minha reação imediata foi escrever de
volta dizendo: "Mas que bobagem. É claro que não se pode comparar uma afirmação científica com uma baseada na
palavra de um indivíduo, especialmente
sobre um fenômeno sobrenatural, como
uma aparição. Afinal, a ciência não se baseia na aceitação cega de afirmativas,
mas em testes concretos, quantitativos,
aplicados por cientistas escrupulosos".
Porém, ao refletir um pouco mais, percebi que a minha afirmação sobre neutrinos bombardeando os nossos corpos
não tem a priori mais valor do que qualquer outra afirmação, feita por qualquer
outra pessoa sobre qualquer assunto.
Afinal, para alguém fora da ciência, dar
legitimidade de graça à palavra de um
cientista não é assim tão automático
quanto os cientistas acreditam. Existe
muita gente que ainda não crê que a humanidade chegou até a Lua. Qual é a prova? Um vídeo? Ah, deve ser falso, truque
da Nasa, coisa de Hollywood.
Aqui o cientista encontra o desafio de
tentar ultrapassar barreiras criadas por
sua linguagem especializada e seu treinamento técnico. Para um cientista, a discussão é absurda, uma perda de tempo. É
claro que as suas afirmações devem ser
levadas a sério: assim é a ciência, construída justamente para evitar a aceitação
de afirmações baseadas em especulações
e crenças individuais. Em ciência, qualquer hipótese, antes de ser aceita, deve
ser averiguada através de testes experimentais, seja em laboratório ou por meio
de observações, como no caso da astronomia. Se a opinião de alguém, mesmo
se o cientista mais respeitado do mundo,
estiver errada, ela não prevalecerá indefinidamente. Talvez, por um tempo, a comunidade aceite-a como plausível. Mas
apenas após submetê-la a testes quantitativos ela será definitivamente incorporada (ou não) dentro das idéias ou teorias aceitas. Essa é a faca amolada da
ciência, que respeita apenas os resultados comprovados por grupos independentes de cientistas.
Se todo cientista -ou aqueles que escrevem sobre ciência- tivesse o cuidado, em suas apresentações para o público não-especializado, de distinguir o que
é fato aceito de meras hipóteses especulativas, a tarefa de convencer o leitor cético seria bem mais fácil. Infelizmente,
muitas vezes isso não ocorre, o que resulta em uma grande confusão: fatos concretos, baseados em dados experimentais, são misturados com idéias semi-fantásticas, apresentadas como fenômenos já observados. Há algumas semanas
escrevi sobre a idéia de multiversos em
cosmologia, que é completamente especulativa, mas que vem sendo apresentada como tendo confirmação observacional. Quem sabe fantasmas não habitam
esses multiversos e vêm, de vez em quando, nos visitar?
Descontando esses casos ambíguos, a
ciência só obterá legitimidade se fizer
parte de um sistema educacional preocupado em explicar o funcionamento do
método científico, de como hipóteses e
teorias são aceitas ou descartadas, e de
como ele é usado na prática, incluindo as
suas limitações. Um cientista pode precisar de fé ao embarcar em um longo projeto de pesquisa baseado em uma hipótese especulativa, mas não para aceitá-la
após a sua comprovação. Essa é a distinção fundamental entre ciência e fé. Se alguém disser que Jesus aparece em seu espelho pelas manhãs, ele terá que aparecer no espelho para qualquer pessoa ver.
Sua imagem terá de ser gravada e reproduzida, analisada e estudada por cientistas, não importando se eles são cristãos,
muçulmanos ou budistas. Se alguém lhe
disser que bilhões de neutrinos e outras
partículas atravessam o seu corpo a cada
segundo, é bom você pedir as credenciais
dele e perguntar se isso foi comprovado
pela comunidade científica ou se é mera
hipótese sua. Afinal, ele pode ser o mesmo sujeito que vê Jesus ao se barbear.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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