|
Próximo Texto | Índice
+ ciência
Outras visões da vida
Divulgação/Jeremy Pickett Heaps, Universidade de Melbourne, Austrália
|
O cloroplasto, que realiza a fotossíntese nos vegetais, teria surgido da fusão com uma bactéria (à dir.); imagem de uma alga da espécie Navicula cuspidata em um processo de divisão celular |
Lynn Margulis e Dorion Sagan dizem que a biosfera constitui uma noosfera, com consciência e vontade
|
Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha
O cenário é familiar: o crescimento desenfreado de uma espécie egoísta lança quantidades sem precedentes de um perigoso gás na atmosfera da Terra, colocando em risco toda a vida no planeta. Mas a familiaridade pára por aí: tudo isso foi há 2
bilhões de anos, as formas de vida em
questão são as insuspeitas cianobactérias
(até pouco tempo atrás chamadas de "algas azuis") e o gás é o oxigênio, indispensável para animais e plantas de hoje.
A comparação entre o oxigênio primordial e a poluição humana é um dos
argumentos do livro "O que É Vida?" para demonstrar a visão peculiar de seus
autores sobre o que chamam de "exuberância planetária": incomparável em engenhosidade, a vida foi muito mais sujeito do que objeto em seus 4 bilhões de
anos de história. Sua ação forjou o planeta e o recobriu com um tapete de matéria
animada, das camadas superiores da atmosfera ao fundo dos oceanos.
Quem se lembrou do termo "Gaia" (a
Mãe Terra dos mitos gregos) para definir
esse planeta vivo acertou em cheio: a bióloga Lynn Margulis, autora do livro com
o escritor Dorion Sagan, ajudou a criar a
chamada "hipótese Gaia", que vê as formas de vida como um único superorganismo. Para os dois, nada escapa ao
abraço de Gaia: mesmo a comunicação
por satélite e os mercados globais não
passariam de novos órgãos da antiga
criatura, prontos para levá-la a mais um
estágio de sua história.
Margulis e Sagan (ex-mulher e filho
mais velho do astrônomo e divulgador
da ciência Carl Sagan, morto em 1996)
deixam claro o ambicioso objetivo da
obra: "reintroduzir a vida na biologia".
Para eles, a vida é um fenômeno material, como
qualquer outro no Universo, mas de um tipo especial. Desafiando a segunda lei da termodinâmica (que postula o aumento inexorável do grau
de desordem, ou entropia, em qualquer sistema), a vida lutaria
de forma quase consciente para manter
sua organização interna.
A característica-chave desse fenômeno
em guerra perpétua contra a entropia
não é a capacidade reprodutiva, argumenta a dupla, mas o que eles chamam
pelo nome grego de "autopoese": a capacidade de fazer a si mesmo. Para continuar vivo, um organismo precisa exportar entropia para o meio circundante e
importar matéria-prima e energia, refazendo-se constantemente.
Embora dediquem um capítulo a cada
um dos cinco reinos da vida na Terra
(bactérias, eucariontes unicelulares,
plantas, fungos e animais), os autores
não escondem a preferência pelos reais
construtores da biosfera, as bactérias.
Os seres vivos mais simples também
são os que mais contribuíram para fazer
do planeta o que ele é hoje: usaram a luz
do Sol como combustível e liberaram no
ar o então mortífero oxigênio; foram os
primeiros a respirar usando o antigo veneno; trocaram genes entre si numa orgia global que dura até hoje e, numa fusão ainda pouco compreendida, geraram todas as outras formas de vida.
Para Margulis, essa simbiose deixou
seus rastros nas mitocôndrias, as usinas
celulares que guardam como relíquia
desse passado bacteriano um DNA próprio. E também nos cloroplastos das
plantas, antigas cianobactérias que hoje
aprisionam luz solar para outros senhores, embora mantendo material genético
próprio. Animais e plantas seriam, assim, o fruto de ao menos duas ou três fusões bacterianas, alianças aparentemente improváveis que espelham a tendência
da vida a interagir para sobreviver.
É com base nessa capacidade da vida
para lidar com os piores apuros que a
dupla faz sua afirmação mais instigante e
difícil de provar: a consciência, em maior ou menor grau, seria um fenômeno comum a todos os
seres vivos da Terra. O
planeta de Margulis e Sagan não é mera biosfera,
mas também uma "noosfera" -um mundo repleto de consciência e vontade, forças que
teriam moldado a evolução.
Meras bactérias, dizem eles, conseguem nadar na direção do alimento e se
afastar do ácido. Protozoários "escolhem" os minerais mais adequados para
criar suas carapaças -escolhas minúsculas, comparadas ao grau de livre arbítrio que se atribui a seres humanos, mas
que, cumulativamente, o teriam criado.
A ênfase nesse avanço consciente da vida durante o processo evolutivo acaba
sendo, talvez, o ponto fraco da obra. Ainda que pequenas decisões "tomadas"
por microrganismos contribuam para
sua sobrevivência individual, Margulis e
Sagan não chegam nem perto de postular um mecanismo que as incorpore na
hereditariedade, que é a raiz de toda a
evolução. Mesmo assim, e a despeito de
um otimismo exagerado que parece enxergar a vida na Terra como um fenômeno invencível, pronto para colonizar as
estrelas e imune aos desmandos humanos, o livro toca as cordas certas da razão
e da imaginação: a biologia da obra transcende o mecanicismo e recupera,
de fato, o contato com a vida.
O que É Vida?
289 págs., R$ 39,50
Lynn Margulis e Dorion Sagan.
Jorge Zahar Editor (r. México,
31, sobreloja, CEP 20031-144,
RJ, tel. 0/xx/21/ 2262-5123).
Richard Lewontin propõe que investigação biológica abandone a dicotomia entre organismo e ambiente
|
Salvador Nogueira
da Reportagem Local
Imagine um átomo. Na cabeça logo
surge a visão de várias bolinhas de bilhar, de duas cores diferentes, grudadas, com outras tantas, menores, girando em torno do centro -algo como
um Sistema Solar em miniatura, só que
mais desordenado. Agora, imagine uma
molécula de DNA. Duas fitas torcidas
formando uma escada. A função? Um
programa de computador que codifica
instruções para fabricar um organismo.
Seja qual for a ciência de escolha, se começarmos a imaginar coisas que não fazem parte de nosso universo sensorial,
intuitivo, descobrimos que todas as imagens que fazemos delas são "traduzidas"
em conceitos que somos capazes de assimilar. "Não se pode fazer ciência sem
usar uma linguagem cheia de metáforas", defende Richard Lewontin, um dos
biólogos mais celebrados da atualidade,
logo na abertura de seu último livro, "A
Tripla Hélice", recém-chegado ao Brasil.
Como de costume, Lewontin é a personificação da cautela. Na pequena obra
(composta pela adaptação de três palestras que ele havia dado antes para biólogos e um capítulo de fechamento escrito
especialmente para a publicação), o objetivo é incentivar os cientistas a perder
todo e qualquer resquício de uma postura determinista, em todas as esferas de
análise da evolução e do comportamento
dos organismos, sobretudo humanos.
Para chegar a isso, ele começa do princípio, do método de raciocinar em ciência, e pede cautela com as metáforas.
"Embora não possamos dispensar metáforas para tentar compreender a natureza", escreve, "existe um grande risco de
que venhamos a confundir a metáfora
com aquilo que realmente interessa." A
hipótese Gaia, por exemplo, nutrida por
Lynn Margulis e James Lovelock (leia o
texto à esq.), é vista por Lewontin como
uma metáfora fora de controle.
Partindo desse pressuposto, Lewontin
dedica o primeiro capítulo a demolir a
noção de que o DNA não passa de um
software a partir do qual os organismos
são criados. Com diversos exemplos e a
típica argumentação assertiva, ele mostra que o ambiente, os genes e o acaso
formam um trio em que não há real determinação de um sobre outro.
"O organismo não é determinado nem
pelos seus genes, nem pelo seu ambiente,
nem mesmo pela interação entre eles,
mas carrega uma marca significativa de
processos aleatórios", diz. "A metáfora
da computação (...) capta alguns aspectos da verdade, mas pode desencaminhar-nos se a tomarmos ao pé da letra."
No segundo capítulo, é a vez de o ambiente sofrer a investida. Ele sugere nada
menos que uma reformulação da teoria
da evolução, embora reconheça o papel
de Darwin de destacar a relação entre organismo e ambiente, conformada pela
seleção natural, como um passo essencial para o desenvolvimento da biologia moderna. "Mas as condições necessárias para o progresso
em um estágio da história
transformam-se em obstáculos em outros estágios."
Para Lewontin, uma nova teoria satisfatória para explicar a evolução precisaria enfocar a relação de dupla troca que existe entre organismo e
ambiente, sem colocar um na dependência do outro. Com isso, cai por terra a
premissa dos fãs do ambiente. "O crescente movimento ambientalista que visa
evitar alterações no mundo natural (...)
não poderá proceder racionalmente sob
a falsa palavra de ordem "Salvemos o ambiente". Não existe um ambiente a ser salvo. O mundo habitado por organismos
vivos está sendo constantemente modificado e reconstruído."
No terceiro capítulo, o biólogo quer colocar um ponto final na noção de que as
relações que formam o ambiente e o organismo são de causa e efeito, argumentando que é preciso adicionar à mistura
uma boa quantidade de acaso e processos que não necessariamente se relacionam com funcionalidade ou sobrevivência. Se ainda havia alguma esperança, para quem chegou até esse ponto do livro,
de encontrar uma rota mais segura para
o estudo da biologia, ela parece acabar
aqui. O próprio Lewontin reconhece, no
último capítulo: "Os capítulos anteriores
têm uma conotação caracteristicamente
negativa", ele escreve. "Eles se dedicam a
explicar por que um enfoque reducionista pode nos levar a formular respostas incompletas ou a ignorar características essenciais dos processos biológicos."
Felizmente, ele oferece então uma nova
rota. Argumentando não serem essas
novidades para os biólogos, ele diz que é
preciso fazer mais: incluir essas noções
nos métodos de trabalho. "O progresso
da biologia não depende de novas conceitualizações revolucionárias, mas sim
de novas metodologias que permitam
responder a perguntas em um mundo de
recursos finitos."
Não é muito para compensar o rolo compressor dos capítulos anteriores, mas, como ele aponta, é mais fácil destruir do que construir. Montando ou desmontando, porém, uma coisa é certa: Lewontin é um mestre na arte de intrigar o leitor.
A Tripla Hélice
144 págs., R$ 25,00 Richard C. Lewontin. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj.32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3167-0801).
Próximo Texto: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: Em busca da supersimetria Índice
|