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Ciência em Dia
Biotecnologia, incerteza e risco
Marcelo Leite
editor de Ciência
A engenharia genética pode ser uma
tecnologia incrível, sob muitos aspectos. Aplicada na fabricação de medicamentos, resultou em produtos quase
idênticos a proteínas do corpo humano,
que melhoraram a qualidade de vida de
doentes crônicos como diabéticos e hemofílicos (reduzindo reações que eram
comuns com compostos de origem animal, por exemplo). Mas a biotecnologia
não está isenta de riscos -como ficou
patente no caso do medicamento EPO.
No final de junho, tornara-se público
que 141 pessoas da Europa e dos Estados
Unidos tratadas com a droga desenvolveram uma rara doença do sangue, a
aplasia pura de glóbulos vermelhos. Nessa condição, o corpo pára de fabricar essas células responsáveis pelo transporte
de oxigênio, essenciais para a vida.
A ocorrência da aplasia foi surpreendente, porque o medicamento deveria
agir no sentido oposto: a eritropoetina,
seu princípio ativo, é a proteína que
manda o organismo produzir essas células. Por isso a EPO entrou na mira dos
exames antidoping: a maior eficiência no
transporte de oxigênio pode melhorar o
desempenho de atletas.
A substância, que o corpo também
produz naturalmente, nos rins, mostra-se útil para medicar quem tem problemas nesse setor, como portadores de insuficiência renal crônica. A biotecnologia permitiu a fabricação da EPO em
grande quantidade com a ajuda de bactérias, enxertando nelas um trecho de
DNA com a sequência necessária para
sintetizarem eritropoetina de tipo humano. Cultivados em grandes tanques
(biorreatores), os germes secretam maniacamente a proteína, sem parar.
Segundo reportagem no jornal "The
New York Times" de 30 de julho, em dez
anos cerca de 3 milhões de pessoas receberam EPO. Uma centena e meia de casos de reações adversas e uma única
morte podem ser consideradas insignificantes, estatisticamente, mas é perturbador o fato de estarem ligadas a uma tecnologia até então vista como mágica.
Para o bem e para o mal, essa é a imagem pública da engenharia genética:
uma bala de prata, capaz de derrotar a
doença com um único disparo de sua
própria munição bioquímica. Ora, organismos e células não são máquinas rudimentares, das quais se deve esperar sempre o mesmo resultado. Seus mecanismos são bem mais complexos, burilados
por milhões de anos de seleção natural.
Suspeita-se que, naqueles casos de
aplasia, o organismo dos pacientes se revelou capaz de reconhecer a proteína como estranha. Como é secretada por bactérias, talvez carregue alguma marca em
sua conformação molecular que a denuncia para o vigilante sistema de defesa
do corpo, como o espião alemão que se
faz passar por inglês, mas não consegue
fazer cálculos na língua de Shakespeare.
Se os anticorpos da pessoa que recebe a
EPO de origem bacteriana atacassem
apenas os espiões, vá lá. Ocorre que eles
também começam a trucidar qualquer
um que fale inglês, quer dizer, a EPO
produzida no próprio corpo. O resultado
é que o paciente perde a capacidade de
fazer glóbulos vermelhos e pode morrer.
Todo medicamento tem algum efeito colateral, não havendo assim motivo para descartar a biotecnologia na produção de proteínas. Essa ainda é uma história
de sucesso -inclusive do ponto de vista comercial: estima-se que o mercado para
EPO seja de US$ 5 bilhões anuais.
O ensinamento a tirar do caso não é que a biotecnologia produz riscos no ritmo frenético com que bactérias produzem a proteína nos biorreatores, mas que os benefícios por ela secretados não podem ser dissociados de incertezas e riscos embutidos no mesmo processo.
Não existe bala de prata, enfim.
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