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Neurocientistas como Mark Solms acham que suas pesquisas vão confirmar alguns achados de Sigmund Freud e permitir que suas hipóteses sejam testadas
RETORNO DO REPRIMIDO
Ciete Silvério - 21.mai.2004/Folha Imagem
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O neurocientista Mark Solms em hotel da zona sul de São Paulo, durante sua estada na cidade para a 1ª Jornada Brasileira de Neurociência e Psicanálise |
"A grandeza de Sigmund Freud no campo mental vai acabar sendo algo como a de Charles Darwin no campo biológico"
Salvador Nogueira
da Reportagem Local
A popularidade da psicanálise, ao longo do último século, esteve sempre acompanhada por
chuvas e trovoadas. Na década de 1980, muitos
de seus opositores chegaram a considerá-la
morta e enterrada, um anacronismo concebido a partir
de distorções da realidade por Sigmund Freud (1856-1939) e defendido irresponsavelmente por seus seguidores. Agora, quando menos se espera, os defensores
da teoria tentam resgatar a glória de outrora. E, quem
diria, é o emergente sucesso das neurociências que vem
resgatar o ideário freudiano.
Na crista da onda está Mark Solms, um pesquisador
de 42 anos nascido na Namíbia, ex-colônia alemã na
África. Ele é um precursor da chamada neuropsicanálise, corrente que traz novas cores à ressurreição freudiana. Para ele, as descobertas feitas com os novos métodos de observação da ativação de circuitos cerebrais estão confirmando o escopo geral da mente delineado por
Freud cem anos atrás. E mais: será por meio das neurociências que a teoria psicanalítica sairá do beco em que
se colocou: "Eu acho que a grandeza de Freud no campo mental vai acabar sendo algo como a de Darwin no
campo biológico".
Solms, que esteve no Brasil no mês passado para participar da 1ª Jornada Brasileira de Neurociência e Psicanálise, não esconde sua admiração pelo pioneiro austríaco, embora admita as falhas no modelo psicanalítico
que ele concebeu. "É tão subjetivo. Não há controle
científico. Não há objetividade. Não há forma de falsear
hipóteses. Leva a especulação sem verificação."
Os problemas não o deixam sem esperança, no entanto. Ao reunir neurociência e psicanálise, ele acha que
pode ter o melhor dos dois mundos, trazendo um bem-vindo rigor científico ao teste das hipóteses freudianas.
Atualmente o campo ainda estaria num estágio embrionário, em que os cientistas caçariam vestígios das
estruturas sugeridas por Freud -id, ego e superego-
no funcionamento cerebral. Num segundo momento,
viria o teste de como essas coisas funcionam. Apesar
disso, Solms diz que alguns elementos básicos da psicanálise já foram confirmados. "Por exemplo, a existência
de cognição inconsciente. Isso está absolutamente confirmado, é uma premissa fundamental da psicanálise."
A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha.
O sr. defende que a psicanálise está ressurgindo, após
um declínio nos anos 1980. Por que houve esse declínio?
Eu acho que houve duas forças em paralelo. Uma vinha do que estava acontecendo na psicanálise, e a
outra, do que estava acontecendo fora da psicanálise. O modo psicanalítico de obter conhecimento sobre como a mente funciona é um método maravilhoso para aprender coisas sobre a mente que não
sabíamos antes. Mas ele é muito melhor para propor
questões e formular hipóteses do que é para testar
hipóteses -não é um método experimental, é um
método exploratório.
Está longe do rigor científico que alguém obtém numa situação experimental. O que eu acho que aconteceu, dentro da psicanálise, foi que as grandes descobertas que poderiam ter sido feitas já foram feitas,
e então atingimos os limites do método. Começamos a ter uma ossificação do campo.
O problema de fora foi que a psicanálise foi a única
garota na cidade por muitas décadas, a única tentativa séria de entender a psicopatologia, as leis governando a trajetória da vida de um indivíduo, a motivação humana. As neurociências naquela época estavam estudando coisas muito mais elementares e
simples sobre cognição, percepção, movimento e assim por diante. Lá pelos anos 1980, os avanços nas
neurociências, indo da psicofarmacologia até a tecnologia de imageamento funcional, permitiram que
os neurocientistas atacassem as mesmas perguntas
que costumavam ser a seara da psicanálise -avanços concorrentes, que não somente estavam fornecendo uma alternativa ao método psicanalítico, mas
também tinham muito mais credibilidade científica.
Eu de fato acho que o método e a teoria psicanalíticos atingiram um ponto crítico 20 anos atrás. Mas
acho que, ao trazer à psicanálise o que fomos capazes
de aprender das neurociências, e vice-versa, podemos evoluir nos dois campos.
Do ponto de vista científico, não é perigoso misturar elementos subjetivos, como os que vêm da psicanálise, com elementos objetivos, que vêm das neurociências?
Minha resposta é curta: "Perigoso é não juntá-las". E
o perigo se aplica aos dois lados. Na psicanálise, nós
estudamos coisas sobre a natureza que não podem
ser estudadas de nenhum outro modo. Parte do
mundo, parte da natureza como nós a encontramos,
inclui experiências subjetivas. Sentimentos existem.
Motivações existem. Ambições. Fantasias. Memórias existem. São parte do mundo empírico, e uma
parte muito importante. Excluir isso da ciência é
uma tragédia, você pode estar deixando metade da
informação de fora da sua explicação sobre como essa coisa funciona. E vice-versa. Porque na psicanálise o problema, como você vê, é que ela é subjetiva demais. Não há controle científico. Não há objetividade. Não há teste de hipóteses. Não há forma de falsear hipóteses. Isso também é perigoso. Leva a especulação sem verificação. Trazendo os dois juntos
corrige o que há de errado nos dois campos. Para
mim, é a coisa óbvia a fazer.
Mas isso não poderia trazer um viés à neurociência?
Você não pode estudar nada com uma observação
nua, ingênua. É sempre a teoria que leva à formulação de hipóteses e à experimentação, implícita ou explicitamente. Você tem de começar com algumas
premissas teóricas, que vêm de algum lugar. Onde
você vai procurar essas premissas? Eu diria que um
lugar óbvio para olhar é a psicanálise, porque a psicanálise tem, com todas as suas falhas -e não as nego-, feito por cem anos um esforço sério para estudar essa parte da natureza. É uma teoria complexa,
sofisticada, um quadro conceitual altamente articulado, que lida com essa parte da natureza, o sujeito
humano. A neurociência pode tomá-la como um
ponto de partida.
A neurociência não está muito no início para que possamos usá-la para dizer que Freud está de volta?
É verdade que, na maioria dos casos, estamos olhando para evidências corroborativas e consistentes, em
vez de confirmatórias ou falseadoras -ainda não
chegamos nesse estágio. Entretanto, eu acredito que
alguns aspectos, os aspectos mais vagos da teoria, foram na verdade confirmados. Por exemplo, a existência de cognição inconsciente. Eu acho que isso está absolutamente confirmado, é uma premissa fundamental da psicanálise. Mas, antes que você possa
testar a teoria psicanalítica usando métodos neurocientíficos objetivos, você primeiro precisa encontrar os correlatos neurais daquela teoria. Senão, você
pode estar testando maçãs ao medir pêras. A primeira tarefa não é "queremos ver se a mente realmente
está dividida em ego, superego e id"; primeiro você
precisa dizer, "vamos ver quais podem ser os correlatos neurais de um aparato que funcione desse jeito". Uma vez que você formula essas correlações, você pode começar a fazer testes preditivos.
Tendo dito tudo isso, eu de fato acredito que, em
grandes pinceladas, o que sabemos de como o cérebro funciona, hoje, é largamente consistente com o
modelo psicanalítico da mente. Isso não pode ser dito de todas as teorias psicológicas.
Um dos preceitos mais invocados pelos cientistas é a navalha de Occam -a resposta correta a um problema deve ser a mais simples possível. Uma das críticas recorrentes ao trabalho de Freud é que ele sempre procura as respostas mais complexas. Como o sr. vê isso?
É uma crítica verdadeira, e eu acho que é um resultado inerente ao método. É um método gerador de hipóteses, é um método heurístico, ele levanta possibilidades, vê coisas que então exigem explicação. Então você tem uma, duas ou três explicações, que podem ser compostas em uma hiperexplicação, que
então pode ser composta numa teoria. E é isso que
aconteceu na psicanálise. É uma coisa ruim. É por isso exatamente que eu acho que será um grande
avanço para a psicanálise fazer essa integração com
os métodos neurocientíficos.
O que da psicanálise não está sendo corroborado?
Há sinais de refutação na área da teoria do instinto,
os impulsos instintivos. O que são os impulsos? Os
impulsos são a representação no aparato mental, no
cérebro, da influência da economia homeostática do
corpo físico. As exigências feitas por aquele aparato
para executar trabalho que cumpra as necessidades
do corpo. Do ponto de vista da neurociência, estudar
essas coisas é um passeio, é fácil. Você põe a cobaia
num estado de deficiência de glicose, de deficiência
de oxigênio, num estado dessa ou daquela necessidade, num estado de desejo sexual, e então você estuda quais são os efeitos no cérebro.
Como resultado disso, temos um entendimento
muito sofisticado hoje de quais são os mecanismos
principais de impulsos e instintos no cérebro de mamíferos, incluindo o humano. E eles não corroboram a visão de Freud. O que é consistente com Freud
é que há algum tipo de tendência geral de busca de
prazer. Mas ele pressupôs que isso é oposto a um outro impulso, um impulso destrutivo. O que descobrimos com a neurociência é que há pelo menos outros
três impulsos, provavelmente cinco, talvez até seis. O
que sabemos é que há um sistema de medo/ansiedade. Temos um circuito de raiva/fúria. E então há o
impulso de separação/perturbação, que, de novo, é
completamente diferente dos outros. Então, há pelo
menos esses três outros impulsos. E não há razão para reduzi-los a uma tendência destrutiva global, seria
bem contrário à navalha de Occam tentar fazer isso.
Adicionalmente, parece haver um impulso de criação/cuidados. E parece haver um impulso de brincar. Mamíferos precisam brincar, como precisam de
água, como precisam de ar. E há a dinâmica social.
Isso não é de jeito nenhum o que esperaríamos na
psicanálise freudiana. Mas também é importante dizer que, uma vez que você sabe disso, você olha para
seus pacientes de um modo bem diferente. Uma vez
que você entende que esses são mecanismos distintos, com seus próprios efeitos, sua própria história
natural, suas próprias sensibilidades, você pode começar a tentar ver qual poderia ser a faixa de atividade desejável para cada um deles.
Considerando seu recente trabalho com a organização
de um grande volume com os trabalhos de Freud: qual é a
sua opinião pessoal sobre ele?
Freud foi uma figura controversa. Mas minha impressão, após estudar muito profundamente a vida
científica e os trabalhos científicos dele, é a de que
Freud era fundamentalmente um cientista amante
da verdade e com a mente muito aberta. Eu acho que
Freud foi um homem imensamente criativo, que
tentou trazer um aspecto fundamentalmente importante da natureza, que não havia sido estudado rigorosa e sistematicamente antes, e que aplicou grande
força intelectual à tarefa. Se você olhar para a progressão das teorias de Freud durante sua vida, ele
sempre se mostrou disposto a abandonar teorias erradas e substituí-las por novas. A visão que surgiu de
Freud como algum tipo de líder carismático de um
culto, ou um autoritário de mente fechada -eu honestamente acho que ela não se encaixa aos fatos.
Temo que nem todos os psicanalistas depois de
Freud tenham mostrado o mesmo nível de integridade intelectual e rigor científico, e isso foi muito em
detrimento não só da psicanálise, mas também da
percepção posterior de quem Freud era. Não quero
dizer que eu não conheça grandes psicanalistas, eu
conheço, mas eu acho que o psicanalista médio hoje,
assim como a visão pública do que a psicanálise é,
hoje, não está nem perto da mentalidade científica
amante da verdade e intelectualmente capaz que
Freud tinha. Não é uma constatação feliz, é um estado de coisas embaraçoso, mas eu acho que agora,
com essa integração com a neurociência, temos a capacidade de ir além disso. E eu acho que a grandeza
de Freud no campo mental vai acabar sendo algo como a de Darwin no campo biológico.
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