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Micro/Macro
Vênus e outros planetas em trânsito
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
No último dia 8, acordei às cinco e
meia da manhã e, munido de meu
visor solar, um par de óculos com filtros
especiais, saí de casa procurando pelo
Sol nascente. Como é comum nas manhãs de primavera, uma densa névoa cobria o vale do rio Connecticut, onde moro, bloqueando quase completamente o
céu. Não daria para ver o Sol nascer e
muito menos Vênus passando à sua
frente. Lembrei-me do astrônomo inglês
Jeremiah Horrocks, um jovem brilhante
que, em 1639, com apenas 20 anos de idade, foi o primeiro a prever quando ocorreria o trânsito de Vênus.
O pobre Horrocks, que morava em
Lancaster, tinha de ter muita sorte para
que o céu estivesse claro em dezembro,
uma raridade na Inglaterra. Mas, conforme escreveu ele, "as nuvens, como que
por intervenção divina, se dispersaram
por completo, e eu fui então convidado a
repetir minhas observações e a presenciar um espetáculo muito agradável".
Imagino que "agradável" era como um
inglês do século 17 expressava o seu êxtase absoluto. No meu caso, não havia previsto o trânsito de Vênus, mas também
dei sorte. A névoa começou a se dispersar e acabou servindo de filtro natural
contra a luz do Sol. Por trás da névoa, pude ver claramente o seu disco luminoso
e, sobre ele, um disco negro, perfeitamente circular: Vênus.
De minha posição na Nova Inglaterra,
o espetáculo durou até as sete da manhã,
quando Vênus terminou a sua passagem. Tudo voltou ao normal, a mancha
negra desapareceu da superfície do Sol.
Hoje em dia, a observação do trânsito
de Vênus é mais uma curiosidade: seu
uso científico mais importante, medir a
distância entre a Terra e o Sol, já foi explorado o suficiente. Sabemos que a Terra, em seu ponto de maior proximidade
do Sol (o periélio), está a 147,1 milhões de
quilômetros, com uma precisão de aproximadamente cem metros.
Para quem não pôde ver o trânsito desta vez, e o Brasil não foi privilegiado, o fenômeno se repetirá em 2012. É bom tentar vê-lo nessa oportunidade, porque a
próxima será apenas em 2117.
Para entender a irregularidade dos
trânsitos, é bom lembrar que os planetas
giram em torno do Sol em órbitas elípticas que estão quase alinhadas em um
mesmo plano, como uma pizza bem
grossa. A variação na inclinação das órbitas e o tamanho pequeno de Vênus fazem com que a superposição de sua superfície (apenas 3% da superfície do Sol)
com a da estrela seja bastante rara: os
trânsitos ocorrem em pares separados
por aproximadamente oito anos, e cada
par de eventos é separado dos outros por
cerca de 120 anos. O Sistema Solar é preciso como um relógio, mas seus mecanismos são bastante complicados.
No ano que vem a Agência Espacial
Européia lançará a sonda Venus Express,
que vai estudar o misterioso planeta.
Aquele disco negro que vi na frente do
Sol é extremamente quente, com temperaturas em sua superfície chegando a
460C. E, como Vênus gira muito lentamente em torno de seu eixo, o seu dia
(uma revolução completa) é mais longo
do que o seu ano (uma revolução completa em torno do Sol, que lá equivale a
225 dias terrestres).
Sua atmosfera extremamente densa é
composta por nuvens amareladas de ácido sulfúrico. A pressão em sua superfície
é equivalente à pressão a 900 metros de
profundidade nos oceanos terrestres. Estranho como aqui na Terra a "estrela-d'alva" é associada à deusa da beleza. Nada como a distância para colorir a percepção das coisas.
Hoje, a importância dos trânsitos não
está no nosso Sistema Solar, mas em outros. A passagem de um planeta de dimensões terrestres na frente de uma estrela distante diminui a sua luminosidade. Mesmo que o efeito seja mínimo, 1
parte em 10 mil, e muito raro, é possível
medi-lo com tecnologia já existente.
Uma missão da Nasa para 2007, chamada Kepler, vai observar 100 mil estrelas semelhantes ao Sol em nossa vizinhança galáctica, durante quatro anos.
Astrônomos esperam observar em torno
de cem trânsitos. Caso esses trânsitos sejam medidos, teremos confirmação direta da existência de planetas com dimensões semelhantes às da Terra girando em
torno de outras estrelas.
Horrocks acharia "muito agradável".
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu".
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