|
Texto Anterior | Índice
Ciência em Dia
Sobre células e celebridades
Marcelo Leite
editor de Ciência
O ator e presidente norte-americano
Ronald Reagan (1981-1989), que
morreu há pouco, com 93 anos, após
longo sofrimento com o mal de Alzheimer, tornou-se instantaneamente o
maior símbolo de propaganda a favor da
pesquisa com células-tronco embrionárias. Bastou que deixasse este mundo para que ganhasse mais visibilidade a carta
que 58 senadores haviam enviado ao
atual presidente, George W. Bush, pedindo reconsideração da política que dificulta a investigação com essas células.
Bush se mostrou resistente, ainda que
por motivo polêmico: "A vida é uma
criação de Deus, não uma commodity a
ser explorada pelo homem", respondeu.
Células-tronco estão presentes na medula óssea e em vários tecidos do corpo.
São capazes de dar origem a vários outros tipos de célula do organismo e, por
essa razão, são também encaradas como
grande promessa no combate a doenças
degenerativas. As embrionárias, obtidas
do interior de blastocistos (embriões
com uma centena de células), figuram no
topo da lista, pois podem dar origem ao
maior número de tipos de célula.
Há pelo menos duas ironias embutidas
nessa celebridade extra e póstuma de
Reagan, a começar pelo fato de George
W. ser beneficiário da voga ultraconservadora reavivada pelo próprio Reagan. A
outra é que a luta de Nancy Reagan pela
pesquisa com células-tronco embrionárias pouco potencial teria para ajudar seu
marido, ainda que pudesse esperar muitos anos pelos frutos dessa investigação.
É curiosa a renitência dessa associação
entre células-tronco e mal de Alzheimer
no debate público sobre o emprego de
embriões humanos em experimentos.
Sempre que se mencionam doenças degenerativas que poderiam um dia ser tratadas com essas células, lá vem à baila o
nome do neuropatologista alemão Alois
Alzheimer (1864-1915), que descreveu a
doença em 1906. É um equívoco.
A forma de doença que leva seu nome
se caracteriza pela morte de neurônios e
pela formação de placas no cérebro todo.
É pouco provável que terapias celulares
venham a resolvê-la, porque seria preciso encontrar uma maneira de disseminar as células reparadoras pelo órgão inteiro, o que está longe de ser trivial.
A popularidade do mal de Alzheimer
em associação com células-tronco provavelmente decorre de uma contaminação semântica por outra doença degenerativa cerebral dotada de nome próprio,
o mal de Parkinson, descrita em 1817 pelo médico britânico James Parkinson
(1755-1824). Nesse caso, sim, as células-tronco têm potencial, pois se trata de
uma disfunção totalmente localizada: os
tremores e a rigidez muscular característicos resultam da destruição de neurônios especializados, produtores do neurotransmissor dopamina, numa área específica do tronco cerebral conhecida
como "substantia nigra".
Para efeito de propaganda em favor da
pesquisa com células-tronco embrionárias, nada melhor do que aproveitar essa
associação natural entre os dois flagelos e
alistá-los na batalha de convencimento
dos senhores idosos, ou quase, que detêm o poder de decidir a latitude permissível de investigação científica em cada
país. Mas fique o leitor avisado de que
Reagan tem pouco a ver com isso.
Celebridade por celebridade, os defensores do estudo de células-tronco embrionárias ainda terão de contentar-se
com o combativo ator Christopher Reeve, que encarnou Super-Homem e hoje
está confinado a uma cadeira de rodas.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Texto Anterior: Micro/Macro: Vênus e outros planetas em trânsito Índice
|