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O SENHOR DOS ANÉIS
Divulgação JPL/Nasa
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Concepção artística mostra a sonda espacial Cassini, da Nasa, entrando em órbita de Saturno, o sexto planeta do Sistema Solar |
Missão não-tripulada a Saturno, planeta famoso por seus impressionantes anéis,
deve chegar ao sistema no ano que vem, revolucionando a forma como os cientistas
vêem esse astro e seus satélites
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Salvador Nogueira
da Reportagem Local
Quando Galileu Galilei apontou seu telescópio
para Saturno, ficou surpreso ao constatar que
o astro, que a olho nu parecia ser um só, na
verdade era triplo, com duas grandes esferas
quase coladas a um globo central. "Para minha grande
surpresa, Saturno apareceu para mim não como uma
única estrela, mas três juntas, quase se tocando umas às
outras", escreveu o famoso cientista italiano, sobre as
observações que fez entre 1609 e 1610. Dois anos depois,
ele voltou a observar o planeta e se chocou, ao descobrir
que os dois corpos menores haviam sumido. "Não sei o
que dizer de um caso tão surpreendente", relatou. Desde aquela época, o sexto planeta do Sistema Solar já se
apresentava um mistério formidável aos astrônomos.
O enigma das observações de Galileu levou 50 anos
para ser decifrado, e só o foi quando o cientista holandês Christiaan Huygens, equipado com tecnologia de
observação superior, confirmou que os astros secundários vistos pelo italiano eram na verdade um anel fino e
plano, posicionado ao redor do planeta -que até hoje
se mantém como a marca registrada do objeto. Apesar
desse sucesso inicial, ainda há muito mais incógnitas do
que respostas a respeito do intrigante sistema composto por Saturno e suas luas. Felizmente, essa condição de
ignorância está prestes a mudar.
Os cientistas planetários andam correndo como loucos nos últimos tempos, tentando antecipar e descobrir
tudo o que for permitido com observatórios terrestres e
com o telescópio espacial Hubble. Afinal, a partir de
2004, eles enfrentarão concorrência desleal. Após sete
longos anos de viagem, a sonda espacial Cassini está
prestes a entrar na região de Saturno e iniciar uma missão científica de quatro anos na redondezas do astro,
proporcionando uma revolução sem precedentes no
que se conhece a respeito do verdadeiro "Senhor dos
Anéis" e seus satélites, entre os quais está um que mais
lembra um planeta, com dimensões avantajadas e densa atmosfera: Titã.
"Muitos de nós, inclusive eu mesma, estamos trabalhando furiosamente para que estejamos prontos quando a Cassini chegar a Titã", afirma Caitlin Ann Griffith,
pesquisadora da Universidade do Arizona, nos Estados
Unidos, que se especializou, ao longo dos últimos anos,
no estudo do satélite que pode guardar muitas das respostas acerca de uma questão que aflige a biologia: como surgiu a vida na Terra?
Inspiração antiga
Há tempos Titã, com uma densa
atmosfera de metano e nitrogênio que impede totalmente a visualização da superfície, tem servido à imaginação de cientistas e escritores. No livro original de Arthur Clarke, "2001: Uma Odisséia no Espaço" (1968), a
nave Discovery estava a caminho de Saturno e de Titã.
No filme, feito paralelamente com roteiro de Clarke em
parceria com Stanley Kubrick, Saturno e Titã foram trocados por Júpiter e Europa, dupla mantida depois nas
continuações da história, em livro e em película.
Apesar da troca, Titã ainda é prestigiada para os cientistas que procuram formas de vida fora da Terra. Não
que eles esperem encontrar vida lá. "Infelizmente em
Titã a água é um pedregulho congelado, portanto não é
um bom solvente para que o material orgânico se "socialize" e acabe formando as grandes moléculas que são
as precursoras da vida. A temperatura na superfície de
Titã é de 94 K [-179C]", diz Griffith. "Ainda assim, é interessante descobrir como a química orgânica se desenvolve em ambientes contendo metano e nitrogênio -a
Terra não teve oxigênio livre em tempos antigos. Uma
hipótese para a Terra primeva é a de que sua atmosfera
continha montes de metano e nitrogênio, como Titã."
Alguns cientistas acham até que Titã, com seus 5.150
quilômetros de diâmetro (maior que os planetas Mercúrio e Plutão), é mais parecido com a Terra primitiva
do que a própria Terra atual, o que faz da lua um local
importantíssimo para estudos de formação das reações
químicas precursoras da vida. Como a densa névoa que
recobre o astro torna impossível o estudo detalhado da
superfície, experimentos em laboratório são um belo
jeito de entender a dinâmica do objeto. (Griffith e alguns colegas até conseguiram recentemente dar uma
espiada por "janelas" do espectro eletromagnético
-frequências de luz que a atmosfera da lua não barra e
permite que cheguem à Terra-, mas não obtiveram
nada tão detalhado quanto os mapeamentos de Marte e
da Lua feitos até com telescópios terrestres modestos.)
Um par de décadas atrás, os cientistas planetários Carl
Sagan e Bishum Khare simularam a produção da névoa
orgânica que recobre Titã num pote. O nevoeiro do satélite é formado pela quebra de metano na atmosfera
pela ação de raios ultravioleta do Sol. "Para provar isso,
Carl e Bishum colocaram no pote os dois principais gases de Titã e dispararam uma carga elétrica neles. Um
sedimento se formou nas paredes do jarro que tem a
mesma cor da névoa de Titã, laranja", afirma Griffith.
Embora essa seja uma demonstração eloquente de um
processo que ocorre a mais de 1 bilhão de quilômetros
daqui, seria melhor ir até lá e verificá-lo "ao vivo". É esse
tipo de lampejo que a Cassini deve fornecer.
Quem se acostumou com o recente modelo de missões não-tripuladas da Nasa, cujo slogan é justamente
"faster, better, cheaper" (mais rápido, melhor, mais barato), vai se chocar com a Cassini. Foram gastos no projeto nada menos que US$ 3,3 bilhões, por uma única
sonda. Para efeito de contraste, vale lembrar que a exploração marciana anda num ritmo bem mais econômico, e a agência espacial americana investe em média,
nas últimas missões, de US$ 300 milhões a US$ 500 milhões por nave. Também não se pode comparar o desafio logístico de enviar um aparelho ao vizinho Marte e o
transporte até Saturno, cerca de dez vezes mais distante.
Para começar, não há combustível que chegue para levar a nave até lá; é preciso usar o impulso gravitacional
oferecido por outros corpos celestes mais próximos (o
chamado "efeito estilingue") para arremessar a nave ao
seu destino. A Cassini, por exemplo, teve de passar de
raspão pela Terra, por Vênus (duas vezes) e por Júpiter
antes de entrar na rota para Saturno.
O nome da sonda veio do astrônomo ítalo-francês
Jean Dominique Cassini, que em 1675 descobriu que o
anel de Saturno era dividido em duas grandes faixas, separadas por um vão, conhecido desde então como a divisão de Cassini. O cientista também descobriu vários
dos satélites do planeta, que até hoje ainda têm contagem incerta. Quando a Cassini foi lançada, em 1997, a
comunidade científica conhecia 18 luas de Saturno. Durante a enfadonha viagem, o número quase dobrou. A
contagem atualmente está em 31 satélites, mas a maioria deles é composta por pedregulhos mais parecidos
com asteróides do que com luas esféricas.
Jornadas anteriores
Não será a primeira visita de
uma sonda não-tripulada ao planeta. Em 1979, a Pioneer-11 passou por lá antes de ser atirada para fora do
Sistema Solar. A mesma coisa aconteceu com a Voyager-1, em 1980. No caso da Voyager-2, em 1981, o impulso gravitacional da aproximação com Saturno colocou
a sonda na direção de Urano, o próximo planeta na lista
dos nove pertencentes ao Sol. Apesar de terem fornecido dados e imagens espetaculares de Saturno e suas
luas, inclusive mostrando a composição dos anéis do
planeta (sete faixas mais definidas, com satélites na
mesma região, contendo as partículas das regiões mais
externas dos anéis -rocha e poeira cuja escala varia da
de um grão de areia à de um automóvel), as missões foram todas de sobrevôo. Em algumas horas, coletam
tantas imagens quanto possível e depois está tudo acabado. No caso da Cassini, será diferente.
A pesada sonda, com seus quase sete metros de comprimento por quatro de largura, deve atingir o sistema
de Saturno em 1º de julho de 2004. Ela entrará em órbita
do planeta e ficará por quatro anos estudando alguns
enigmas hoje sem resposta clara. Por exemplo, por que
Saturno tem um campo magnético tão intenso? Ou o
que leva o planeta a girar tão rapidamente em torno de
si mesmo (ele completa um dia a cada dez horas, embora tenha 120 mil quilômetros de diâmetro, dez vezes
mais que a Terra), a ponto de ser o planeta mais achatado do Sistema Solar? Qual é o clima que se esconde sob
o tom alaranjado aparentemente calmo do topo das nuvens? Por que há diferentes proporções de hélio e hidrogênio lá e em Júpiter, seu parente mais próximo? Todas
essas são perguntas que podem não despertar o interesse de qualquer um, mas os cientistas sabem que serão
elementos cruciais no entendimento da arquitetura do
Sistema Solar, o que por sua vez ajuda a especular sobre
o quão raros são planetas como os daqui no Universo.
Henri Throop, da Universidade do Colorado em
Boulder, por exemplo, é um dos membros da equipe do
instrumento ISS (subsistema de imagens científicas, na
sigla em inglês), que contém as câmeras da Cassini. Mas
um de seus estudos mais recentes fala de algo que aparentemente nada tem a ver com Saturno: a possibilidade de formação de planetas em regiões muito ativas na
formação de estrelas, berçários estelares como a nebulosa de Órion. "Minha especialidade é anéis planetários:
quão velhos eles são, qual é sua composição, que processos estão acontecendo neles e assim por diante. Eu
entrei nesse trabalho do Hubble porque os discos em
Órion e os discos em Saturno pareciam semelhantes.
Acabou que eles não são similares, mas essa era a idéia
original." Com a chegada da Cassini ao sexto planeta, o
trabalho de Throop deve voltar as raízes.
Pouso distante
A revolução que a sonda a Saturno
deve proporcionar deve ser semelhante à que a Galileo
executou em Júpiter, revelando em detalhes, além do gigante gasoso, alguns dos mundos que orbitam o maior
planeta do Sistema Solar. Mas a Cassini promete ter um
adicional -ela deve executar o primeiro pouso de uma
nave espacial num satélite natural que não seja a Lua.
Acoplada à sonda da Nasa viaja a Huygens, pequena nave em formato de disco construída pela ESA (agência
espacial européia) que deve se desprender do veículo
principal e realizar uma aterrissagem em Titã, enviando
as primeiras imagens da superfície daquele objeto que,
acredita-se, possui oceanos de metano e plataformas de
gelo congelado na superfície. A luz do Sol que atravessa
a atmosfera do satélite e atinge o solo é 0,1% da que vemos na Terra -deve ser um bocado escuro por lá.
"A sonda Huygens vai ajudar a esclarecer o tempo de
Titã -ventos, umidade, temperatura, características
das nuvens. Estamos interessados em entender a dinâmica energética do tempo e como ela se compara à do
tempo na Terra", diz Griffith. "A Huygens também está
equipada com instrumentos para determinar a composição do material em que irá pousar. O que vamos descobrir depende basicamente de onde pousarmos."
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