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Ciência em Dia
O sino de Pavlov
Marcelo Leite
editor de Ciência
Umberto Eco ainda não deve ter pensado em compor um romance com
tal título, na linha de "O Pêndulo de Foucault" e da legião de imitações que convocou -mas bem que poderia. É a conjunção fatal de um objeto concreto com
algum nome próprio mais que evocativo, prenhe de ressonâncias na história da
ciência e da filosofia. De resto, nada melhor para um romance do que ser construído em torno do mistério sobre a existência e o destino de um artefato-chave,
de preferência algo pertencente a uma
personalidade.
Poucas figuras do mundo da ciência
penetraram tão fundo nas camadas do
imaginário cultural quanto Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936) e a cena de cães
salivando automaticamente ao som de
um sininho, depois de ensinados a associá-lo com o fornecimento de comida. É
a imagem por excelência da força do
condicionamento, da materialidade
meio obtusa que podem assumir os
comportamentos. Houve tempo em que
reforços negativos e positivos tinham
presença garantida no repertório de conversas de bar, assim como o complexo de
Édipo, a dialética de Marx e a evolução
de Darwin.
Não faltam cabeças dispostas a questionar a existência dessas três entidades,
mas os sinos de Pavlov? Ninguém poderia duvidar deles. Bem, Stephen Black,
do departamento de psicologia da Universidade Bishop (Canadá), tanto duvida
que veio a público na seção de cartas da
revista científica "Current Biology"
(www.current-biology.com) para espinafrar o neurocientista Tim Tully, do Laboratório de Cold Spring Harbor, nos
EUA, por ter propagado o "mito" dos sinos de Pavlov.
Segundo Black, não haveria menção a
sino algum nas obras do estudioso russo.
Campainha, apito, choque, flash de luz,
metrônomo -sim, todos esses estímulos de condicionamento teriam sido
mencionados nos escritos pavlovianos,
segundo Black, mas não os famigerados
sinos. Na sua versão, a fonte do erro teria
sido um jornalista (quem mais?) da revista "Time", ao dizer que o instrumento
sonoro primário havia sido um sino.
Tully replica na mesma seção de correspondência da "Current Biology" que
mitologia, mesmo, é dar curso à idéia de
que os sinos de Pavlov seriam um mito.
Ele afirma que o erro de Black foi considerar unicamente as traduções de Pavlov
para o inglês, e não as edições originais
em russo.
Embora ele mesmo não fosse versado
na língua de czares e bolcheviques e estivesse, portanto, impossibilitado de tirar
ele mesmo a teima, Tully recorreu a três
neurocientistas russos, sua colega Rusiko Bourtchouladze e os neurofisiologistas Pavel Balaban e Konstantin Anokhin.
Todos confirmaram que Pavlov tinha
usado sinos, sim, e que o erro iniciador
do suposto mito foi do tradutor americano, que teria vertido como "campainhas
elétricas" o vocábulo "kolokolcheak",
utilizado na época de Pavlov para designar os sininhos que eram usados nas
portas das casas.
Resumo da ópera, ou do romance que
Eco não escreveu: o culpado não foi o
primeiro dos dois suspeitos sempre de
plantão (o jornalista), mas o segundo na
fila (o tradutor).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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