|
Texto Anterior | Índice
Ciência em Dia
De volta ao sequenciamento
Marcelo Leite
editor de Ciência
Não faz o menor sentido ser contra
ou a favor do genoma. Isso seria
mais ou menos como discordar do rio
Amazonas, ou apoiar Fernando de Noronha. Ocorre que, como já foi dito, toda
unanimidade é burra. Seria pouco inteligente, por exemplo, fazer folhetos de
promoção turística do Brasil só com fotos de um desses monumentos naturais.
O fato é que está faltando gente para
pôr um grão de sal no caldo insosso em
que a pesquisa biológica -e, por tabela,
o jornalismo científico- vai se transformando: gene, genoma, DNA, gene, genoma, DNA, gene, genoma, DNA.
Ninguém aguenta mais tanta biologia
molecular e máquinas enfadonhas de sequenciamento, cuspindo sem parar fieiras intermináveis de letras, ainda por cima um alfabeto com apenas quatro delas: ATCGGATTACAGCTAATCGGAT.
Muitos já começam a se perguntar qual o
sentido, afinal, dessa algaravia.
Fora algumas vozes desafinadas de jornalistas, é preciso aguçar a audição para
entreouvir, nos corredores dos laboratórios e do poder científico, as melodias
realmente interessantes que já se insinuam entre os bumbos da genômica. Algumas notas discretas foram emitidas,
há pouco menos de duas semanas, pelos
luminares que escolhem os novos Nobel.
À primeira vista, os prêmios de medicina e de química foram mais uma consagração da biologia molecular. O primeiro saiu para estudiosos de genes do verme-modelo C. elegans, entre eles o lendário Sydney Brenner (figura-chave na
elucidação do código que traduz DNA
em proteínas) e John Sulston, ex-chefão
do Projeto Genoma Humano no Reino
Unido. Já o de química foi para avanços
na identificação e na visualização de moléculas de proteínas.
Chama a atenção, porém, que Brenner
e Sulston tenham recebido a láurea por
seus trabalhos não com DNA, mas com
um verme de contadas 959 células, por
ajudar a desvendar o intricado processo
de desenvolvimento que leva a essa arquitetura exata -um prêmio para o tipo
clássico de biologia, laboriosa, que consome meses e meses sobre um microscópio. De outro lado, o galardão de química ficou com os inventores de ferramentas para estudar proteínas, os verdadeiros atores do drama molecular da vida.
É verdade que a Fundação Nobel ainda
fala no DNA como o diretor de cena a comandar a ação das proteínas, mas talvez
não seja pretensioso supor que foi um
lapso -e que o sinal emitido por essas
premiações aponta o verdadeiro futuro
da pesquisa biológica e médica muito
além dos genomas e de seu sequenciamento (uma simples soletração).
Ou será que não? Tal é o risco de adotar
a atitude crítica diante de um consenso:
perder de vista que ele pode até ser obtuso, mas nem sempre se apóia no vazio.
Um recente artigo de revisão na revista
"Cell" (4 de outubro, vol. 111, págs. 13-16)
defende abertamente a proliferação de
sequenciamentos sob o título "Sequencie primeiro, faça perguntas depois".
O argumento do texto de Arend Sidow,
da Universidade Stanford, é que a mera
comparação -em geral feita com a ajuda de computadores- das sequências
de diversas espécies, do C. elegans ao homem e ao camundongo, tem revelado
informações importantes sobre o papel
de genes no desenvolvimento e no funcionamento de células, tecidos e órgãos.
Um exemplo é o da comparação do gene FOXP2 no homem e no chimpanzé,
que revelou duas mutações muito recentes possivelmente relacionadas com a
emergência da linguagem articulada.
Sem a sequência do Projeto Genoma
Humano, talvez nunca viessem à tona.
Noves fora, a conclusão é a mesma lá
de cima: toda unanimidade é burra -seja ela contra ou a favor.
Texto Anterior: Micro/Macro: Psicologia e evolução Índice
|