São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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Juan Pratginestós - 15.out.2000
Imagem aérea mostra o canal do Cassiquiare, na Amazônia, entre o Brasil e a Venezuela


+ ciência

Cuidado: frágil

Claudio Angelo
Enviado especial a Manaus

Em algum momento por volta do ano 2050, o aquecimento anormal da Terra, provocado pelas emissões de gases de efeito estufa, vai disparar um processo até então inesperado na floresta amazônica: as altas temperaturas causarão um aumento sem precedentes na atividade dos microrganismos do solo, que passará a emitir quantidades colossais de dióxido de carbono (CO2), da ordem de 1 bilhão de toneladas por ano -aproximadamente a mesma descarga dos Estados Unidos, o país que mais polui no planeta. De sumidouro, a Amazônia se converterá em uma grande fonte desse gás. O clima ficará tão quente e seco e a concentração de CO2 no ar será tão alta que a floresta simplesmente entrará em colapso, morrendo asfixiada. É o fim da Amazônia.
Esse cenário catastrófico, felizmente, só existe até agora nos supercomputadores do Hadley Centre, no Reino Unido, um dos principais centros de previsão do tempo e modelagem climática do planeta. Infelizmente, a probabilidade de que isso tudo aconteça devido ao efeito estufa não pode ser descartada.
O novo modelo climático que inclui a resposta da Amazônia ao aquecimento global foi apresentado pelo meteorologista britânico Peter Cox no começo do mês em Manaus, durante a 2ª Conferência Científica do LBA (sigla em inglês para Experimento em Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia). O evento, que reuniu mais de 300 pesquisadores do Brasil e do exterior -principalmente dos EUA- entre 7 e 10 de julho, apresentou tudo o que os cientistas já descobriram sobre o funcionamento da floresta e suas relações com o clima do planeta nos últimos quatro anos, tempo em que o LBA está em atividade. Duas grandes conclusões puderam ser tiradas dos dados: primeira, a ciência


Conferência mostra que ação humana sobre a Amazônia pode alterar o clima global e que a floresta pode entrar em colapso com o efeito estufa


ainda sabe muito pouco ou quase nada sobre a floresta. Segunda, quanto mais ela aprende, mais conclui que a Amazônia é complexa demais e está num equilíbrio frágil a ponto de alterações muito pequenas a algum ponto do sistema poderem causar danos a todo ele. E, de quebra, ao resto do globo. O modelo de aquecimento global desenvolvido por Cox e dramaticamente apelidado de "Amazonia dieback" (colapso da Amazônia, em inglês), é um exemplo dessas conexões planetárias. Quando o pesquisador incluiu a resposta da biosfera ao efeito estufa, a temperatura máxima prevista para o fim do século subiu em relação à estimativa oficial do IPCC, painel científico ligado à ONU que relata periodicamente o estado do conhecimento sobre as mudanças climáticas. "O aumento médio da temperatura em 2100 fica em 5,5C, que é quase o máximo do pior cenário previsto pelo IPCC", disse Cox à Folha. "Não é um quadro bonito." Para o climatologista Carlos Nobre, do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), coordenador do LBA, o colapso amazônico é um evento de "baixíssima probabilidade de ocorrência". segundo Nobre, o modelo britânico deu esse resultado porque ele gera uma situação em que o aquecimento global aumenta a frequência de "mega-El Niños", fenômenos que deixam o clima muito mais seco na Amazônia. "O problema é que a maioria dos outros modelos não prevê uma perturbação nas chuvas devido ao aquecimento", afirma. O que não quer dizer que não haja motivo para preocupação. Afinal, continua Nobre, o fato de a probabilidade de ocorrência dos tais "mega-El Niños" ser diferente de zero já basta para deixar os climatologistas de cabelo em pé. Surpresas desagradáveis já fazem parte da agenda dos estudiosos do clima. "O buraco na camada de ozônio sobre a Antártida, por exemplo, não foi previsto por nenhum modelo", diz.

Selva poluída
Mas os temores não estão só no futuro. Um dado preocupante coletado pelo LBA e apresentado na conferência de Manaus indica que as queimadas na Amazônia já estão aumentando as concentrações de ozônio troposférico (O3), um gás que, além de contribuir para o efeito estufa, ainda é tóxico para árvores e seres humanos. O nível médio do ozônio na atmosfera na região Norte daqui a uma ou duas décadas tende a ser o mesmo de lugares como Araraquara, no interior paulista, ou o meio-oeste dos EUA. Hoje, durante os picos de queimadas, a concentração do gás já é a mesma de áreas urbanas poluídas, como a cidade de São Paulo. "As concentrações normais de ozônio na floresta são de 10 a 12 ppb [partes por bilhão"", disse à Folha o físico Paulo Artaxo, da USP, que coordena os estudos de química atmosférica do LBA. "Durante as máximas de queimada em Santarém [Pará", em Rondônia e em Mato Grosso, elas vão a 100 ou 120 ppb." Medidas iguais às da capital paulista. O O3 é um gás de duas caras. Na estratosfera, camada da atmosfera acima de 12 km de altura, ele é benéfico e forma a célebre camada de ozônio, que filtra os raios ultravioleta do Sol e cujo colapso sobre o continente antártico os cientistas não previram. Na troposfera, ou baixa atmosfera, o gás é um poluente. Ele causa as irritações nos olhos e mucosas que vitimam habitantes das grandes cidades -além de diversas internações nos períodos mais secos. Nas árvores da floresta, ele enrijece o tecido celular, reduzindo a fotossíntese. "A planta fixa menos carbono e cresce menos", relata Artaxo. Os cientistas já sabem há algum tempo que as queimadas causam aumento no ozônio. Devido à toxicidade dessa molécula para as plantas, a floresta tem uma espécie de mecanismo autolimpante, que impede a formação de grandes quantidades do gás. "Quando você converte floresta para pastagem, transforma a química da atmosfera para uma que favorece a produção [de O3"", disse Paulo Artaxo. O problema era que ninguém sabia da gravidade do quadro até o LBA começar a medir o ozônio nos três Estados campeões de queimadas -Rondônia, Mato Grosso e Pará-, em 1998. De posse de uma série de dados que vai de 98 a 2001, o grupo de Artaxo construiu modelos de computador para prever o que aconteceria com as concentrações do gás no futuro. "O "background" [a média" do ozônio passará para 30 a 40 partes por bilhão, valor semelhante ao de áreas do Estado de São Paulo", afirmou o pesquisador. Ele diz que não dá para prever exatamente quando isso ocorrerá. "Certamente não vai ser ano que vem. Mas tampouco será só daqui a cem anos." Como se não fosse um problema em si, o aumento do O3 ainda deve causar uma reação em cadeia na atmosfera cujos efeitos para o clima do planeta são imprevisíveis. É que o ozônio "malvado" da baixa atmosfera é responsável pela quebra do OH, um radical considerado uma espécie de detergente natural do ar. Essa molécula, altamente reativa e de meia-vida de um milionésimo de segundo, ajuda a retirar da atmosfera outros vilões, como o metano (o segundo maior causador do efeito estufa) e o tóxico monóxido de carbono. Uma vez que o excesso de ozônio elimina o OH, ninguém sabe o que acontecerá com o metano e o monóxido de carbono na região amazônica. Mas as grandes prejudicadas pelo aumento do ozônio serão mesmo as plantas que restarem em pé na floresta. Segundo Paulo Artaxo, para cada 10 ou 20 partes por bilhão adicionais do gás, ocorre uma perda da produtividade vegetal que não é quantificada para a Amazônia. E, claro, a agricultura na região -ironicamente, a maior responsável pelo processo- também será atingida. Embora não haja números, o físico da USP cita um estudo feito na China que descobriu que o ozônio estava causando perdas de bilhões de dólares à produção agrícola. "A China passou, então, a adotar um monitoramento rigoroso desse gás", afirmou o pesquisador. Resta saber se os fazendeiros amazônicos estarão dispostos a evitar mais poluição -ou a pagar para ver.

Menos chuvas
Artaxo e sua colega Maria Assunção, também da USP, iniciam em setembro uma série de vôos em Rondônia, um dos Estados mais afetados pelo desmatamento, para investigar um outro fenômeno relacionado às queimadas: como a conversão de floresta em pasto pelo fogo está alterando o ciclo hidrológico da floresta amazônica.
A pergunta é importante, primeiro, porque todo o ecossistema da floresta depende da chuva -daí a própria definição de floresta tropical, ou "rainforest", em inglês. Depois, é a selva que abastece de umidade as chuvas de verão no cerrado, a principal região produtora de alimentos do país.


Segundo cientista do Inpa, a Amazônia está retirando da atmosfera todo o carbono produzido por atividades humanas na América do Sul


Um estudo realizado por Assunção, também apresentado na conferência de Manaus, já mostrou que a alteração acontece e pode ser agravada por fatores como o relevo. Segundo a pesquisadora da USP, a diferença de precipitação entre áreas elevadas com cobertura florestal e pastagens em zonas mais baixas é de até 14%. Segundo Artaxo, isso acontece porque as queimadas mudam a composição dos aerossóis -partículas dispersas no ar- que formam a base para a formação das nuvens na floresta. Essas nuvens, como mostraram dados anteriores do experimento, são extremamente eficientes para fazer chover: elas não passam de 4,5 quilômetros de altura e, portanto, nunca congelam. Como a floresta desprende muito vapor d'água, a condensação é rápida e a chuva cai em gotas grandes. O tipo e a quantidade de partículas que formam a base para essas nuvens -os chamados núcleos de condensação de nuvem- também são específicos para a floresta: a concentração de aerossóis no ar na Amazônia é de 300 partículas por centímetro cúbico, e a maior parte deles contribui para formar núcleos de condensação. Com as queimadas, a quantidade de aerossóis aumenta para até 10.000 partículas por cm3, como na cidade de São Paulo. Mas menos de 10% deles formam núcleos. O resultado é que a estrutura das nuvens muda e a condensação forma gotas pequenas, menores que 15 milésimos de milímetro de diâmetro -que simplesmente não se precipitam. "Isso já está acontecendo em Rondônia", disse Artaxo. Mas não é só ali que está o problema: num sobrevôo do Negro, os cientistas detectaram um aumento na concentração de aerossóis no arquipélago das Anavilhanas, em plena selva, a 100 km de Manaus. Resultado da pluma de poluição da capital amazonense.

O carbono sumiu
Se o mecanismo das chuvas é mais ou menos conhecido, uma das questões mais polêmicas do LBA continua motivo de debate entre os pesquisadores: o quanto a Amazônia absorve ou emite gás carbônico. Quando o LBA começou, em 1998, havia quem achasse que a floresta pudesse ser uma fonte desse gás, resultado da respiração das plantas e do solo. Havia também que pensasse que ela fosse um "ralo", ou seja, que retirasse grandes quantidades de carbono da atmosfera -e, como corolário, o Brasil poderia vender aos países ricos os créditos por esse serviço de compensação de emissões dentro do Protocolo de Kyoto, acordo mundial para combater o efeito estufa. As primeiras medições do fluxo de gás carbônico do experimento, feitas por 13 torres espalhadas pela região amazônica cerca de 20 metros acima da copa das árvores, deixaram animados os defensores da hipótese do "ralo": em algumas regiões, cada hectare de floresta absorvia até oito toneladas de carbono equivalente, elevando a média de absorção total da Amazônia para respeitáveis 600 milhões de toneladas. Mas, não era bem assim. A técnica das torres, usada para medir o fluxo de carbono de florestas temperadas, teve problemas inesperados quando aplicada à selva tropical. "Vimos que o gás carbônico [resultante da respiração das plantas" se acumula no dossel e se desprende pela manhã, como grandes bolhas", disse à Folha o pesquisador Antônio Donato Nobre, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia). "O resultado é que elas medem bem de dia e não medem bem à noite. Na floresta temperada o dossel é aberto e isso não acontece." Nobre descobriu, ainda, que o relevo influencia na liberação desse gás retido. Em regiões de vale, as tais bolhas, em vez de subir para a atmosfera, desciam as encostas e iam parar nos rios, "enganando" as torres. Feitos os ajustes, a conta do carbono ficava mais modesta. Em algumas regiões, se aproximava de zero. E, então, mais um problema surgiu na contabilidade: um estudo de pesquisadores da Universidade de Washington e da USP, publicado neste ano na revista "Nature", mostrou que o gás carbônico resultante da decomposição da matéria orgânica nos rios -cerca de 1,2 tonelada por hectare ao ano- não estava sendo contabilizado. Apesar da incerteza, hoje os pesquisadores do LBA acreditam que a floresta seja um sumidouro discreto de carbono, da ordem de uma tonelada por hectare ao ano. Nobre vai além: "Eu acredito que as florestas da América do Sul, especialmente a Amazônia, estejam consumindo todo o CO2 que produzimos na América do Sul. Ou seja, a mata estaria resolvendo naturalmente o problema das emissões sul-americanas do principal gás causador do efeito estufa. O pesquisador do Inpa baseia sua aposta no fato de o "sinal" de gás carbônico do continente, medido por aviões e por estações espalhadas pelo mundo, ser igual a zero. Em outras palavras, é como se a América do Sul simplesmente não emitisse nada -o que, como se sabe, não é verdade. "Se nós desmatamos e queimamos milhões de toneladas de petróleo [principal fonte de CO2 de origem humana", para onde isso está indo? Infere-se que a floresta esteja absorvendo." Nobre tem também um palpite sobre o fato de os rios serem uma fonte de CO2 para a atmosfera: a medição só enxergou metade do quadro. Durante a estação das cheias, a matéria orgânica decompõe e, de fato, grandes quantidades de gás carbônico escapam para o ar. "Mas, na vazante, você tem um crescimento das plantas na beira dos rios, que retiram o carbono do ar [durante a fotossíntese, os vegetais absorvem gás carbônico e o transformam em açúcar, fixando-o na biomassa"." Um experimento feito por ele em uma estação do Pantanal, que mediu o fluxo no rio durante um ano inteiro, mostrou que o balanço do carbono tendia ao equilíbrio -ou seja, tudo o que é emitido é retirado depois.

Cipó fatal
Mas nem mesmo o fato de a floresta servir de "esponja" para a poluição sul-americana pode ser comemorado. Um estudo realizado por um pesquisador britânico e já aceito para publicação por uma das principais revistas científicas do mundo indica que nem todas as plantas absorvem o excesso de carbono da mesma maneira. Segundo o estudo, as árvores da Amazônia respondem mais lentamente à "fertilização" por carbono que os cipós. O resultado é que estes passam a crescer mais depressa, matando as árvores.
"A ecologia é muito complexa", diz Antônio Nobre. "Tem muitas incertezas que nós vamos resolver, eu tenho certeza", brinca o cientista, que deverá iniciar medições do fluxo de carbono a bordo de aviões para resolver parte das dúvidas.
Para Carlos Nobre, independente das incertezas, a floresta está prestando ao planeta um serviço ambiental que não entra nas equações da economia -a mesma economia que destrói a floresta. Após quatro anos de estudos e R$ 50 milhões consumidos pelo LBA, o cientista do Inpe afirma que o desmatamento pode ser um péssimo negócio -especialmente considerando potenciais catástrofes. Para ele, com o aumento da fragmentação da floresta, eventos improváveis como o megaincêndio que destruiu 140 mil hectares em Roraima em 1998 tornam-se uma possibilidade. A conta da preservação, diz, deve ser encarada como uma espécie de seguro. "Eu pago seguro de carro há 33 anos e só bati uma vez. Quanto a nossa sociedade está disposta a pagar por um seguro?"



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