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Micro/Macro
O Deus relojoeiro: uma parábola revisitada
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Em 1802, o teólogo inglês William Paley propôs o seguinte argumento tentando justificar a existência de
Deus, que eu parafraseio: "Imagine uma pessoa passeando em uma floresta. Essa pessoa é perfeitamente
normal, mas ela nunca havia visto um relógio. Enquanto ela explora as belezas naturais, encantada com tantas
árvores, flores e animais, depara um relógio de bolso jogado aos pés de um arbusto. Ela pega o relógio e, imediatamente, conclui que ele deve ter sido criado por
Deus. Segundo essa pessoa, um instrumento de tal
complexidade jamais poderia ter sido criado por processos naturais; era necessária a mão de Deus." Paley
extrapola o argumento para o mundo natural, dizendo
que a complexidade da natureza é rica demais para ter
aparecido por acaso. Para ele, a natureza é o nosso relógio, cuja existência devemos atribuir à mão de Deus.
Eu gostaria de revisitar essa parábola, tomando a liberdade de mudar a sua perspectiva. Vamos voltar à
floresta, onde uma pessoa encontra um relógio. Maravilhada, ela pega o relógio e leva-o para o seu vilarejo. Lá
chegando, reúne o conselho de anciãos e revela o misterioso tesouro perante o olhar incrédulo dos pressupostos sábios. Assustados, os anciãos começam a discutir o
que fazer com tal instrumento, perguntando-se qual a
sua função e quem o construiu.
Rapidamente, as opiniões se dividem em dois campos: aqueles que acreditam que o relógio é criação de
Deus e aqueles que querem investigar a questão com
mais cuidado. Os que acreditam que o relógio é obra de
Deus querem decretá-lo sagrado e, portanto, intocável
pelas mãos dos homens: o instrumento deve ser exposto como prova da existência de Deus, permanentemente protegido por uma redoma de cristal e por guardas.
Sua existência deverá permanecer um mistério.
O outro grupo, por sua vez, quer examinar o instrumento, descobrir a sua função. Para eles, mesmo que a
origem do instrumento seja, de fato, misteriosa, isso
não significa que ela deva permanecer assim. Talvez,
com paciência e criatividade, seja possível entender de
onde ele veio e qual a sua função. Talvez o instrumento
não tenha, no fim das contas, uma origem sobrenatural.
A briga entre as duas facções é feia. No final, vencem
os que acreditam que o instrumento é criação de Deus e,
portanto, é intocável. O relógio torna-se símbolo da
existência de Deus e mais e mais pessoas passam a ir à
igreja, ajoelhando e se benzendo com fervor perante o
estranho objeto.
Anos se passam até que, um dia, um imenso terremoto destrói o vilarejo e a igreja. Ninguém consegue encontrar o relógio, perdido entre os escombros. Tropas
do governo são despachadas da capital para ajudar nas
escavações, procurando sobreviventes. Seu líder é um
jovem capitão, muito audaz e curioso. Ele mesmo participa das escavações, ansioso por salvar vidas. No meio
das montanhas de concreto e vidro, ele encontra, por
acaso, o relógio, pondo-o discretamente em seu bolso: a
história da misteriosa aparição do instrumento feito
por Deus era famosa no país inteiro. Que sorte a dele encontrá-lo!
À noite, em sua tenda, o jovem capitão começa a examinar o estranho objeto. Ele puxa o único pino que encontrou e, para a sua surpresa, a parte posterior se abre,
revelando o mecanismo interior. Girando o pino de um
lado para o outro ele escuta o tique-taque e percebe que
os ponteiros começam a se mover. Em menos de uma
hora, o capitão descobre que o instrumento foi criado
para marcar a passagem do tempo. Influenciado pelos
ensinamentos teológicos de sua infância, ele se pergunta se esse é o aparelho que marcará a chegada do dia do
Juízo Final. Rindo, conclui que o instrumento não tem
nada de sobrenatural, que ele é criação humana.
Mas quem o criou? Antes de partir em busca de uma
resposta, ele desmonta e remonta cuidadosamente o
mecanismo do relógio. Em duas semanas, usando partes de madeira e pesos de pedra, o capitão constrói dois
relógios bem grandes. Os incrédulos anciãos, ao receber
os relógios de presente, imediatamente consideram o
capitão como sendo o diabo. Eles só relaxam após vários habitantes da vila construírem os seus próprios relógios, seguindo as instruções do capitão. Alguns até
penduram os relógios em suas casas, ao lado da cruz.
O capitão, então, sai pelo mundo em busca do construtor de relógios. E, mesmo que ele jamais o tenha encontrado, ele próprio torna-se em um grande relojoeiro
e inventor. Assim faz a ciência, ao desvendar os mecanismos do mundo e ao nos ensinar a aceitar a dúvida
como a única porta para o conhecimento.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College,
em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu".
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