São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003 |
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+ciência EURECA NAS ENTRELINHAS
Manuscrito milenar revela que Arquimedes fazia análise combinatória há 2.200 anos Gina Kolata do "New York Times"
Dois mil e duzentos anos atrás, o grande matemático grego Arquimedes escreveu um tratado chamado "Stomachion". Diferentemente
de seus outros escritos, logo caiu na obscuridade. Pouco dele sobreviveu, e ninguém sabia o que
pensar dele, mas agora um historiador da matemática
em Stanford, EUA, examinando antigos pergaminhos
sobrescritos por monges e quase destruídos pelo mofo,
parece ter resolvido o mistério sobre o assunto do tratado. No processo, ele abriu uma surpreendente nova janela sobre o trabalho do gênio que é mais lembrado
(talvez apocrifamente) por seu grito de "Eureca!" ao
descobrir um modo inteligente de determinar se uma
coroa real era mesmo de ouro puro.
Talvez tão marcante quanto a descoberta de que Arquimedes conhecia análise combinatória seja a história de um manuscrito que data de 975, escrito em grego num pergaminho. É um dos três conjuntos de cópias dos trabalhos de Arquimedes que estiveram disponíveis durante a Idade Média (os outros foram perdidos, e nenhum deles continha o "Stomachion"). "Para Arquimedes, como para todos os outros da Antiguidade, não temos os trabalhos originais", diz Netz. "O que temos são cópias das cópias das cópias." Os cientistas avaliam as cópias comparando os textos que elas têm em comum e procurando por passagens exclusivas, que podem atrair algum interesse em particular. Por esses parâmetros, o manuscrito era valioso. Mas foi quase perdido. No século 13, explica Netz, monges cristãos, precisando de material para compor um livro de orações, despedaçaram o manuscrito, apagaram seu conteúdo, dobraram suas páginas ao meio e as cobriram com texto religioso. Após séculos de uso, o livro de orações -conhecido como palimpsesto, porque contém texto que foi sobrescrito- terminou em um monastério em Constantinopla. Santo Sepulcro Johan Ludvig Heiberg, um estudioso dinamarquês, o encontrou em 1906 na biblioteca da Igreja do Santo Sepulcro, em Istambul. Ele notou traços suaves de matemática sob as orações. Usando uma lente de aumento, transcreveu o que podia e fotografou cerca de dois terços das páginas. Aí o documento desapareceu, perdido com outros preciosos manuscritos no conflito entre gregos e turcos. Ele reapareceu nos anos 1970, nas mãos de uma família francesa que o comprara em Istambul, no início da década de 1920, e o guardara por cinco décadas antes de tentar vendê-lo. A família teve problemas para encontrar um comprador, no entanto, em parte porque havia alguma dúvida sobre se havia adquirido legalmente o manuscrito, para começar, mas também porque ele parecia horrível. Foi consumido pelo mofo, nos anos em que a família o reteve, e estava áspero e feio. Em 1998, um bilionário anônimo o adquiriu por US$ 2 milhões e o cedeu ao Museu de Arte Walters, em Baltimore, onde ele ainda está. "É preciso enfatizar quanto a situação é incrivelmente incomum", diz Netz. Com o manuscrito em mãos, o pequeno grupo de estudiosos passou a reconstruir o texto original em grego. Não foi fácil. "Você olha a olho nu e não vê nada, absolutamente nada", conta Netz. Luz ultravioleta revelou leves traços de escrita, mas incluía tanto as orações quanto a matemática. "O maior problema é a combinação do fato de que muitos caracteres estão escondidos com o fato de que muitos são tão suaves que ficam invisíveis", afirma Netz. E, ainda por cima, há as lacunas das páginas que foram arrancadas ou consumidas pelo mofo. Ruído filtrado Imagens por computador ajudaram. Roger Easton, do Instituto de Tecnologia de Rochester, Keith Knows, da Boeing, e William Christens-Barry, da Universidade Johns Hopkins, conseguiram desenvolver programas para separar a escrita do "ruído" em torno dela, e em muitos lugares as letras gregas saltaram da tela do computador. "O produto do software é incrível", disse Netz. Mas também tinha limitações, especialmente perto das pontas rasgadas das páginas. Para reconstruir os textos, Netz e Nigel Wilson, um professor de estudos clássicos na Universidade de Oxford, estão usando cada ferramenta disponível: luz ultravioleta, imagens de computador, as fotografias de Heiberg e seu próprio conhecimento íntimo de textos gregos antigos. Ainda assim, em algumas áreas, "o texto provavelmente permanecerá uma conjectura", segundo Netz. Foi a sorte que o levou a seu primeiro lampejo acerca da natureza do "Stomachion". Em agosto, quando estava prestes a começar a transcrever uma das páginas do manuscrito, ele conta que recebeu um presente pelo correio, um modelo recortado em vidro azul de um quebra-cabeça Stomachion. Ele havia sido feito por um negociante aposentado da Califórnia que localizou Netz pela internet como um estudioso renomado de Arquimedes. Olhando para o modelo, Netz percebeu que um diagrama na página que estava transcrevendo era na verdade um rearranjo das peças do quebra-cabeça Stomachion. De repente, ele viu aonde Arquimedes queria chegar. O diagrama envolvia 14 peças, e a palavra "profusão" parecia associada a ele. Heiberg e os que o seguiram pensavam que isso significava que seria possível montar muitas figuras com o rearranjo das peças. "Isso é parte da razão pela qual as pessoas não entendiam sobre o que versava aquilo", diz Netz. Mas a velha interpretação parecia trivial, dificilmente digna do tempo de Arquimedes. Conforme ele foi examinando as páginas do manuscrito e montando o texto, percebeu que o que Arquimedes estava realmente perguntando parecia ser: "De quantos modos você pode juntar as peças para formar um quadrado?" Essa questão, para Netz, "tem significado matemático". "As pessoas presumiram que não havia combinatória na Antiguidade", continua. "Não provocou portanto desconfiança alguma que Arquimedes tenha dito que existiam muitos arranjos e que ele iria calculá-los. Mas foi isso que Arquimedes fez; suas introduções vão sempre ao ponto." Arquimedes teria resolvido o problema? "Estou certo de que ele resolveu, ou não o teria apresentado", afirma Netz. "Eu não sei é se ele resolveu corretamente." Com relação ao nome, derivado da palavra grega para estômago, os matemáticos estão incertos. Mas Diaconis tem um palpite. "Vem de "virar o estômago" ", disse. "Se você se envolve com ele, é o que acontece." 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