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Micro/Macro
Discurso prático sobre energias e suas transformações
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Energia é uma dessas palavras que são
usadas com mais facilidade do que
entendidas. Comecemos com o Aurélio:
1. Força, vigor. 2. Firmeza de caráter [essa eu não conhecia] 3. Fís. Propriedade
dum sistema que lhe permite realizar trabalho. Claro, estou mais interessado nessa última. Para entendê-la, é bom definir
"trabalho", já que o sentido aqui não é o
mais comum.
Eis um exemplo: seu carro morreu e
precisa ser empurrado. Você tem de aplicar uma força sobre ele. Essa força, ao
mover o carro a partir do repouso, estará
realizando trabalho. Para tal, você gastará energia. E de onde vem essa energia?
Dos seus músculos. E a energia dos seus
músculos? Vem da metabolização dos
alimentos. Eles, por sua vez, precisam ser
plantados por alguém e, para crescer,
precisam da energia do Sol. E a energia
do Sol? Vem de processos de fusão nuclear em seu interior.
Portanto, em última instância, quem
moveu o seu carro foram os prótons fundindo-se no interior do Sol. Sei que isso
não é lá um grande consolo quando você
está suando em bicas no meio da rua,
mas ao menos você não se sentirá assim
tão sozinho. Você e os prótons solares
empurram juntos o seu carro.
O exemplo acima mostra que, ao empurrar o carro, ou seja, ao realizar trabalho sobre ele, você transferiu energia do
seu corpo para o carro. Com isso, você
mudou a sua velocidade, no caso a partir
do repouso. A energia de movimento do
carro se chama energia cinética. Podemos então dizer que trabalho é equivalente à mudança na energia cinética do
carro de zero (carro em repouso) ao seu
valor final (carro em movimento).
Tudo que se move pode realizar trabalho. Um exemplo disso é uma colisão.
Você e os prótons solares estão empurrando o seu carro na rua quando vem
um infeliz na contramão e bate de frente
em você. Felizmente, ele estava indo devagar. Mas o estrago fica estampado nos
pára-choques. Ou seja, a energia cinética
dos carros foi usada na deformação de
suas latarias. Esse não é mesmo o seu dia.
Aos berros, você larga o carro na rua e
vai procurar um telefone público. Passando abaixo da marquise de um prédio,
um moleque no quarto andar resolve
testar a lei da gravidade soltando um balão de borracha cheio d'água. Ele acerta
bem na mira, a sua cabeça. Num primeiro momento vem a raiva, mas a água
fresca até que lhe faz bem, com o calor e o
seu corpo suado. E se não fosse água?
"Mais um desgraçado", você grita,
olhando para cima, mas o moleque se esconde atrás da janela, às gargalhadas.
Você reflete sobre o que ocorreu.
Quando o moleque está segurando o balão fora da janela, ele não está em movimento. Mas, assim que o balão cai, a sua
velocidade aumenta devido à força da
gravidade. No caso, é a gravidade que está realizando trabalho sobre o balão.
Quanto mais alto o balão, maior será a
sua energia de impacto. Se o moleque vivesse no oitavo andar, o balão explodiria
bem mais violentamente em sua cabeça.
Existe aí uma transformação entre dois
tipos de energia. Quando o balão está para cair, tem apenas energia potencial, a
capacidade de realizar trabalho, caso entre em movimento. Ao cair, a energia potencial vai se transformando em energia
cinética até que, ao chegar ao chão, toda
ela virou cinética. Existem vários tipos de
energia, que podem se transformar uns
nos outros. Uma mola, quando comprimida, também armazena energia potencial. Ao ser solta, ela entrará em movimento, adquirindo energia cinética.
Você finalmente acha um orelhão que,
claro, está quebrado. Olhando para o
céu, você amaldiçoa os deuses, comparando sua sorte à de Jó. De repente, você
escuta uma bela voz que diz: "O senhor
quer usar meu celular?" É uma belíssima
moça, sorriso estampado no rosto.
Incrédulo e molhado, você aceita. Ao
discar o número da sua companhia de
seguros, você imagina as cargas elétricas
na bateria do celular, as negativas atraídas às positivas. Essa atração faz com que
elas se movam, gerando a corrente que
alimenta o telefone: energia química
transformando-se em cinética.
Você dá uma olhada para a moça e timidamente pergunta: "Quer tomar um
café comigo ali no bar da esquina?". Para
sua surpresa, ela aceita. Uma outra transformação energética começa a ocorrer
em seu corpo, fazendo seu coração bater
mais rápido.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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