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Ciência em Dia
Futuros xavantes
Marcelo Leite
editor de Ciência
Culturas alicerçadas sobre mitos, como as de muitos índios do Brasil, parecem prisioneiras de uma noção de
tempo em que o futuro, se é que cabe,
não tem lá muita importância -tudo
que acontece ou pode acontecer acaba
subentendido como uma espécie de reedição do que há de essencial nos mitos de
fundação. Isso, é claro, até entrarem em
contato -ou choque- com os brancos
e sua marcha obstinada para a frente,
convictos de que o futuro é moldável a
golpes de tecnologia.
A boca entortada pelo cachimbo racionalista tende a emitir juízos somente sobre os limites da cultura alheia, mas é
certo que a tecnociência contemporânea
também encontra os seus. Não tanto, porém, da parte de outra cultura, e sim do
ambiente: alguns golpes afrontam sua
natureza dúctil, e o avanço estanca.
Essas generalidades sobre o encontro e
o desencontro de culturas foram suscitadas pela leitura de texto incomum, um
prefácio -para uma obra acadêmica-
do chefe Tsuptó Brupréwn Wairi, da aldeia xavante Etéñitépa, na área indígena
Pimentel Barbosa (Mato Grosso).
Trata-se de "The Xavánte in Transition" (Os Xavantes em Transição), lançado há coisa de um ano pela University
of Michigan Press, de Carlos Coimbra Jr.,
Nancy Flowers, Francisco Salzano e Ricardo Santos. O livro, premiado como
melhor obra interdisciplinar de 2003 pela Divisão de Antropologia Geral da Associação Americana de Antropologia
(EUA), deve sair no ano que vem em
português, pela Fiocruz.
Em 22 e 23 de julho de 2002, Coimbra e
Santos foram mais uma vez a Etéñitépa
apresentar ao "warã" (conselho dos homens) os resultados de uma década de
pesquisas sobre saúde na aldeia. O depoimento de Tsuptó colhido na ocasião e
registrado no livro se abre com uma
queixa sobre as moléstias inexistentes
antes da chegada dos brancos, diabetes e
tuberculose: "Nossos organismos, nossos corpos, os corpos de nossas crianças,
não podem fazer frente a tudo isso; não
podem resistir. Porque essas não são
doenças nossas. Elas vêm de fora".
Parece a situação clássica do choque de
culturas, impregnada da eficácia dolorosamente material que elas podem adquirir e fadada a produzir somente incompreensão, conflito e sujeição do mais fraco. Toda cultura, porém, comporta, e
precisa comportar, alguma dose de pragmatismo e flexibilidade, sobretudo nas
ocasiões em que é confrontada com o
desconhecido. Nessas situações, ganha
em relevo aquele que é talvez o único
equipamento universal do homem: a alternativa ao instinto que consiste na capacidade de calibrar reflexivamente suas
ações de acordo com a disposição dos
objetos reais. Na falta de melhor expressão, conhecimento empírico.
O xavante Tsuptó, por exemplo, não é
tão prisioneiro assim de um tempo sem
futuro. Para enfrentar a ameaça que vem
de fora, ele se mostra disposto a forjar
uma aliança até mesmo com um tipo peculiar de estrangeiro, o estudioso: "Bem,
eu acho que essas coisas [as doenças] devem ser estudadas em maior profundidade, de modo que, se soluções para essas coisas que estão acontecendo puderem ser encontradas, elas serão".
Note que não há fé cega na ciência, pois
o chefe de Etéñitépa admite que haja coisas impossíveis de solucionar. Algo em
que a maioria dos cientistas convencionais não acredita, pois são prisioneiros
de uma noção de tempo em que o futuro
sempre esteve sob controle do homem.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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