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+ Gleiser
Mito ou Verdade?
A coroação da razão humana seria revelar o plano da Criação
Q
uando resolvi que seria físico,
tinha em mente um caminho
bem claro: queria participar
da busca pelas leis que estão por trás
de tudo o que existe na natureza, as
leis que ditam desde a origem do Universo até o comportamento dos átomos e das partículas de matéria.
Inspirado por livros como "A Evolução da Física", de Leopold Infeld e Albert Einstein, entendi que essa era a
grande crença das ciências físicas, que
a diversidade do mundo é uma ilusão
dos sentidos. Ocultas entre as aparências estão essas leis fundamentais, esperando para serem descobertas.
O ápice do conhecimento, a coroação da razão humana, seria revelar o
plano da Criação. Como escreveu Stephen Hawking em "Uma Breve História do Tempo", a descoberta dessas
leis, da unificação de todos os processos naturais, seria equivalente a conhecer a "mente de Deus".
Não há dúvida que esse "Deus" de
Hawking é uma metáfora, que ele não
se referia ao Deus judaico-cristão.
Sendo esse o caso, que Deus é esse?
Por que cientistas como Hawking e o
Prêmio Nobel Steven Weinberg, por
que imortais como Einstein e os arquitetos da física quântica Max
Planck, Erwin Schrödinger e Werner
Heisenberg dedicaram tantos anos de
suas vidas à busca dessa teoria unificada? Por que milhares de físicos hoje
continuam essa busca, convictos de
que essa unificação existe?
Tudo começou, como sempre, na
Grécia antiga. Os filósofos da escola de
Pitágoras, famoso pelo teorema dos
triângulos retângulos (que, aparentemente, ele não inventou), acreditavam que a essência da natureza era
matemática: os números, e as relações
entre eles, descrevem tudo o que ocorre. O objetivo da filosofia era entender
como. Segundo os pitagóricos, números e geometria eram inseparáveis.
O exemplo do triângulo torna isso
claro, já que os comprimentos dos três
lados do triângulo são dados por números relacionados por uma equação.
Formas e números, portanto, expressam a realidade.
O grande filósofo Platão abraçou a
idéia dos pitagóricos e foi além. Segundo ele, a geometria era o caminho
da verdade. A essência da realidade
era geométrica e só podia ser contemplada pela mente. Simetria passou a
ser sinônimo de beleza e de verdade.
Para Platão, o arquiteto divino do cosmo (que ele chamou de Demiurgo) era
um geômetra.
Chegando ao século 17, Galileu, Kepler e, mais tarde, Newton abraçaram
a geometria como a língua da natureza. Os "Principia", a obra em que Newton elabora os princípios da mecânica
e a lei da gravidade, são escritos como
um tratado geométrico. Inspirados
pelo sucesso desses patriarcas, os físicos abraçaram o conceito de simetria
platônico: por trás da diversidade dos
fenômenos naturais, além das distorções de nossa percepção da realidade,
há uma ordem que pode ser expressa
em termos matemáticos. Essa ordem
é a expressão máxima da verdade e cabe ao cientista desvendá-la. É ela a
"mente de Deus". (Literalmente, para
Kepler e Newton.)
Não há dúvida de que a idéia de simetria serviu bem à física. Ainda serve. Ela simplifica as equações: o Sol
pode ser tratado como uma esfera,
mesmo que não seja. Mas a avidez
com que a idéia de unificação de tudo
é buscada indica algo mais profundo.
No curto espaço dessa coluna, afirmo
apenas que ela é diferente da idéia de
que simetrias são boas aproximações
para descrever o mundo natural. Não
encontramos (ainda) indícios de que
ela exista. Talvez porque seja mesmo
muito sutil, ou talvez porque seja uma
ilusão, um mito.
Seria herético imaginar que a natureza não se presta às nossas expectativas de ordem?
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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