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MICRO/MACRO
O Universo como laboratório
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
O poeta anglo-americano T.S. Eliot
(1888-1965), nas linhas finais do
quarto dos seus "Quatro Quartetos", escreveu (tradução minha): "Ao fim de todas as nossas explorações, chegaremos
ao ponto de partida, conhecendo o lugar
como que pela primeira vez". As linhas
de Eliot descrevem perfeitamente o que
ocorre hoje na interface entre a cosmologia, que estuda o Universo como um todo, e a física das partículas elementares,
que investiga os tijolos fundamentais da
matéria, a partir dos quais tudo é feito.
Existe uma confluência entre as duas
disciplinas, uma interdependência na
qual o avanço de uma afeta o avanço na
outra. Esse casamento do micro com o
macro é consequência direta do modelo
do Big Bang, segundo o qual o Universo
teve uma infância muito quente e densa.
Aplicando o que se sabe de física às condições radicais de temperatura e pressão
vigentes nos primeiros instantes do cosmo, chega-se à conclusão de que, no início, não existiam estruturas contendo
várias partículas como, por exemplo, um
átomo -composto por prótons e nêutrons em seu núcleo, circundado por elétrons: a temperatura era tamanha que ela
sobrepujava qualquer atração mútua entre essas partículas, impedindo a formação de estruturas mais complexas.
Existia um cabo-de-guerra: de um lado, as partículas querendo se agregar e,
do outro, a radiação de alta temperatura
(ou energia) bagunçando tudo. Fala-se
de uma espécie de sopa cósmica, cuja receita vai mudando com a temperatura: à
medida que o Universo se expande, a
temperatura da radiação (e, consequentemente, a energia) vai caindo, permitindo a formação das primeiras estruturas.
É dessa coreografia primordial que, em
torno de um centésimo de milésimo de
segundo após o "bang", surgem os prótons e nêutrons, a partir dos quarks.
Após um segundo, os primeiros núcleos
atômicos, com prótons e nêutrons. Após
300 mil anos, os primeiros átomos de hidrogênio. Como sabemos disso? Inúmeras observações astronômicas mostram
que o Universo é banhado em radiação,
o fóssil da época de formação dos átomos, que surgiu quando elétrons finalmente se juntaram aos núcleos. Essa "radiação cósmica de fundo" é compatível
com um Universo que teve uma infância
quente e densa. Para entendermos os
primeiros momentos dessa infância, é
preciso aplicar a física das partículas à
cosmologia. É aqui que a coisa complica.
As partículas elementares e suas interações são estudadas à força bruta, por
meio de colisões promovidas em aceleradores de partículas, onde elas são atiradas umas contra as outras. Seria como
atirar uma laranja contra outra a altíssima velocidade, para estudar o que há
dentro delas. Sem dúvida, da colisão voariam caroços, suco e bagaço. Quando,
por exemplo, um próton bate em outra
partícula, o mesmo ocorre: da energia da
colisão surgem várias outras partículas,
matéria sendo criada a partir de energia,
conforme dita a famosa fórmula E=mc2.
Quanto maior a energia do choque,
maior a massa das partículas criadas.
O problema é que os aceleradores são
máquinas gigantescas e muito caras. Parece paradoxal, mas quanto maior a
energia da colisão maior tem de ser o
acelerador. A tecnologia atual permite
colisões com energias equivalentes ao
que ocorreu no Universo um trilionésimo de segundo após o "bang", mas não
antes. Quem vai pagar por máquinas
maiores, mais caras e, ainda assim, incapazes de atingir energias realmente próximas das do início do tempo?
O Universo primordial atingiu energias imensas, milhares de trilhões de vezes maiores do que as dos aceleradores.
Tal como a radiação cósmica de fundo, é
possível que essa era primordial tenha
deixado fósseis, capazes de ser identificados hoje. Se partículas bem maciças foram produzidas na fornalha primordial,
elas podem ser detectadas aqui na Terra.
Na falta de tecnologias alternativas, o futuro da física de altíssimas energias está
nas mãos da cosmologia. E o futuro da
cosmologia também está nas mãos da física de partículas. Voltando a Eliot, o conhecimento futuro virá de uma volta ao
momento no qual tudo começou.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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