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Ciência em Dia
Outras modernidades no Ituqui
Marcelo Leite
editor de Ciência
Ituqui é uma ilha a jusante de Santarém
(PA), na margem direita do Amazonas. Ali surgiu há dez anos o Grupo Renascer, um punhado de famílias de agricultores-pescadores que se organizou
para enfrentar um pecuarista com planos de criar búfalos na ilha defronte.
O fazendeiro decerto achava que a modernidade e o progresso estavam nas patas dos quadrúpedes bubalinos. O pessoal do Ituqui discordou. Sua experiência dizia que búfalos e lagos de pesca não
podem conviver no mesmo espaço.
Na época das cheias, entre os meses de
dezembro e julho, as águas do Solimões e
do Amazonas sobem dezenas de metros
e inundam quilômetros margens adentro. Formam com isso centenas ou milhares de lagos, que com a baixa das
águas podem ficar isolados, tornando-se
um excelente local para pesca de peixes
como pirarucu, tambaqui e curimatã.
Os moradores de Ituqui sabem que, se
exagerarem na captura, o pescado some.
Daí que seu grupo, além de enfezar-se
com o pecuarista, também firmou um
dos muitos acordos de pesca espontâneos das comunidades ribeirinhas amazônicas. Eles estabelecem limites para a
pesca em certas épocas e certos locais.
Nos lagos Verde e Pixuna, por exemplo,
a proibição é permanente, pois se acredita que dali saem os exemplares que vão
repovoar os outros lagos.
Como também é comum na Amazônia, o Ituqui e seu zoneamento ecológico
intuitivo acabaram incorporando uma
parceria com alguma ONG (organização
não-governamental), no caso o Ipam
(Instituto de Pesquisa Ambiental da
Amazônia, www.ipam.org.br). Surgiu o
Projeto Várzea, com o objetivo de aprofundar a experiência e de aferir com objetividade científica seus resultados. Até
um reflorestamento das áreas de lagos
com espécies fornecedoras de alimentação para os peixes foi iniciado, com espécies como uruá, socoró e bacuri.
Pouco depois, entrou na roda também
a WWF-Brasil, braço da poderosa rede
internacional Fundo Mundial para a Natureza. E foi a WWF (www.wwf.org.br)
que anunciou, no começo do mês, os primeiros resultados quantificados -e
cientificamente validados- dessas iniciativas para conferir sustentabilidade à
pesca: elas conseguem elevar em até 60%
a produtividade, se comparadas com os
métodos tradicionais de pesca. Segundo
comunicado à imprensa da WWF, áreas
manejadas chegam a render 41 kg de peixe por hectare (100 m x 100 m), contra 26
kg na pesca convencional.
A parceria Ipam-WWF, que dura três
anos, já rendeu seis trabalhos científicos.
Eles foram escritos por David "Toby"
McGrath e Oriana Almeida, ambos dos
Ipam, e por Kai Lorenzen, do Imperial
College de Londres, que orientou a tese
de doutorado de Almeida. Eles entrevistaram 3.000 pessoas, nos oito principais
portos de pesca e de 259 famílias de 18
comunidades de ribeirinhos (9 com
acordos de pesca e 9 sem).
Talvez com a acreana Marina Silva no
Ministério do Meio Ambiente alguém
em Brasília comece a se importar com
esse tipo de atividade, embora ela gere só
87 mil empregos (57% deles nas comunidades como Ituqui). A conclusão racional a tirar é que se mostra prudente e
produtivo generalizar a experiência dos
acordos de pesca, talvez criando direitos
de propriedade sobre a exploração de cada lago, como cotas de captura.
Quem já provou uma costela de tambaqui na brasa ou um filé de pirarucu sabe o tamanho do prejuízo à civilização
que uma diminuição permanente dos
exemplares capturados traria, como já
ocorre nos oceanos com o bacalhau.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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