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Ciência em Dia
Medicina e conservação
Marcelo Leite
em Cambridge (EUA)
Já se disse que tradutores são traidores,
mas às vezes não há mesmo como deixar de ser. Considere a expressão "conservation medicine", que ouvi pela primeira vez durante a Conferência de Jornalismo Ambiental organizada pela
Fundação Nieman no fim de semana
passado. O primeiro impulso é traduzi-la
como "medicina de/da conservação", seguindo o exemplo de "conservation biology", mas o resultado não faz muito sentido, porque se trata da saúde de seres
humanos, não de sua conservação, como
se pretende fazer com o ambiente (cuja
saúde também está em pauta).
"Medicina conservadora" é ainda pior.
"Medicina com conservação"... não.
"Medicina e conservação" talvez seja o
menos ruim, mas o melhor mesmo é explicar do que estou falando, afinal. Melhor dizendo, do que falou Mary Pearl,
presidente da ONG Wildlife Trust, na
conferência da Nieman (fundação ligada
à Universidade Harvard, dedicada desde
1938 ao aperfeiçoamento do jornalismo).
A idéia é que hoje há um número crescente de doenças cuja propagação tem
muito a ver com interferência humana
em ecossistemas e populações naturais,
o que, portanto, demanda um tipo de
abordagem coordenada, com a participação de médicos, epidemiologistas, veterinários e biólogos da conservação.
Um dos exemplos preferidos de Pearl é
a chamada doença da vaca louca, em que
uma proteína defeituosa (príon) se multiplica e destrói partes do cérebro do animal, transformando-o em algo parecido
com uma esponja (daí o nome técnico de
encefalopatia espongiforme bovina, ou
BSE, na abreviação em inglês). Todo
mundo sabe que seres humanos podem
desenvolver moléstia parecida, após ingerir produtos bovinos contaminados
(não há casos registrados no Brasil), e
que ovelhas têm uma variante da doença. Menos conhecido é o fato de que só o
controle da carne bovina e ovina não
afasta totalmente o perigo.
Pearl prefere referir-se à doença por
outra denominação técnica, TSE (encefalopatia espongiforme transmissível),
que descreve melhor o fato de a doença
nada ter de específico contra bois e vacas
-como fica evidente no fato de os
príons passarem de uma espécie à outra.
Em laboratório, já se mostrou que é possível transmiti-la também para roedores
e macacos. Outras 20 espécies animais
foram contaminadas em zoológicos da
Europa, após alimentação com carne ou
ração contaminada. Um tipo de TSE
também afeta cervos selvagens nos EUA.
Nada garante, portanto, que o próprio
ambiente (espécies silvestres) sirva como repositório permanente de príons,
que poderiam daí voltar a infectar animais de interesse para a economia humana, ou que a doença se propague e
ameace populações silvestres já em risco
de sobrevivência. É o campo por excelência da "conservation medicine".
Seria bom se fossem só as TSEs, mas há
outras doenças ameaçadoras saltando
do ambiente para o homem, conhecidas
como EIDs (da abreviação em inglês para doenças infecciosas emergentes). Pense na Aids (chimpanzés), na Sars (civetas), no vírus do Oeste do Nilo, que chegou às Américas provavelmente num
mosquito viajando de avião e hoje infecta uma gama de animais silvestres -inclusive aves migratórias, que podem perfeitamente trazer o vírus ao Brasil.
Aliar medicina e conservação parece
mesmo uma idéia sensata.
O jornalista Marcelo Leite teve a hospedagem em
Cambridge paga pela Fundação Nieman
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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