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Polêmica sobre a descoberta de contaminação genética em milho no México revela os bastidores nem sempre isentos das publicações científicas
OS GRÃOS DA DISCÓRDIA
Reuters - 29.set.2001
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Ativistas do Greenpeace protestam em frente ao Ministério da Agricultura do México contra importação de milho transgênico dos Estados Unidos |
Fred Pearce
Da "New Scientist"
A novela começou em setembro de 2001. O ministério do ambiente do México anunciou que DNA de milho geneticamente modificado havia sido encontrado em variedades nativas,
plantadas em pequenas propriedades.
Os resultados, claro, foram empunhados pelos ativistas de oposição às lavouras transgênicas. E, em novembro, eles ganharam mais munição quando os achados
foram publicados na prestigiosa revista "Nature". Então, em abril deste ano, as coisas sofreram uma reviravolta. Num ato sem precedentes, a "Nature" declarou
que lamentava a publicação do artigo original e soltou
duas cartas que apontavam erros fatais na pesquisa.
O passo atrás gerou ainda mais cobertura da imprensa do que a descoberta original. Era a primeira vez que a
"Nature" renegava um artigo, contrariando seus autores e seus revisores científicos. Alguns suspeitam de jogo sujo, afirmando que representantes da indústria da
biotecnologia orquestraram uma campanha de cartas e
petições contra o estudo original. Mas críticos do estudo da Universidade da Califórnia em Berkeley, onde
trabalharam todos os protagonistas principais da saga,
podem não ter precisado de nenhum estímulo de fora.
Os autores da pesquisa, o estudante de pós-graduação
em ciências ambientais David Quist e seu professor, o
biólogo mexicano Ignacio Chapela, já eram figuras detestadas no campus de Berkeley. Em 1998, eles fizeram
uma campanha mal-sucedida para impedir que a universidade assinasse um pacto extraordinário com a gigante biotecnológica suíça Novartis. O acordo, firmado
em meio a protestos estudantis e tortas voando por todo lado, deu à Novartis o direito de se servir da melhor
pesquisa em plantas para desenvolvimento de produtos
em troca de US$ 50 milhões. Mas, enquanto os manifestantes o vêem como algo que compromete a liberdade
acadêmica, muitas pessoas no Departamento de Biologia Microbiana e de Plantas devem seus empregos ao
tratado com a empresa, hoje chamada de Syngenta.
Dois anos mais tarde, na noite de 11 de outubro de
2000, ativistas ambientais destruíram milho transgênico que estava sendo cultivado por alunos de Mike Freeling, que é membro do departamento. O grupo disse a
um jornal local que havia testado o milho para ter certeza de que ele era geneticamente modificado.
Os pesquisadores, furiosos, suspeitaram que o ato tivesse origens dentro do departamento, e apontaram
Quist como culpado. "Pouco antes do vandalismo,
Quist pediu "primers" [sequências de DNA construídas
pelos cientistas" de alguns dos pesquisadores de milho
do meu departamento que pudessem ser usadas para
identificar transgênicos no campo", afirmou Steven
Lindow, um professor sênior do departamento. Seus
colegas "ficaram preocupados e ainda mais desconfiados depois do ato", conta o pesquisador.
Uma semana depois da destruição dos plantios, Lindow conversou com o orientador de Quist, Chapela, sobre as acusações. Hoje Lindow diz que aceitou imediatamente que Quist era inocente. Mas Quist afirma que
as acusações continuam e que elas "provocaram um dano irreparável na minha credibilidade acadêmica".
Na época do vandalismo no campo experimental
transgênico, Quist estava no Estado mexicano de Oaxaca, coletando amostras de milho das lavouras. Quando
a pesquisa baseada nessas amostras ganhou o noticiário, um ano mais tarde, ela ameaçou mais as carreiras dos biotecnólogos que as botas dos manifestantes.
Quist e Chapela primeiro usaram PCR, a técnica-padrão de amplificação de DNA, para detectar sequências inseridas no milho Bt produzido nos EUA. Esse método
pode gerar resultados positivos falsos, admite Quist. Mas a dupla diz que os resultados de seus experimentos mostram, "além de qualquer dúvida razoável", que as tais sequências estão presentes em amostras das variedades nativas vindas de regiões remotas do México.
Genes espalhados
Quist e Chapela, então, usaram uma técnica chamada PCR reversa para descobrir a posição precisa das sequências transgênicas. O resultado pareceu mostrar que o DNA alienígena havia se fragmentado e se espalhado pelo genoma do milho -uma
conclusão que disparou uma histeria entre os cientistas.
Os autores ainda alimentam a disputa. "Isso sugere
que o DNA transgênico pode se mover pelo genoma,
causando uma gama de efeitos imprevisíveis, da interrupção das funções normais até a modificação de produtos expressos que viram agentes tóxicos", diz Quist.
As duas cartas críticas publicadas em abril pela "Nature" atacaram essa segunda descoberta. E Quist e Chapela concordaram que havia falhas quando, em carta publicada na mesma edição da revista, eles disseram: "Nós
admitimos que a asserção de nossos críticos sobre a falsa identificação das sequências... é válida."
Em circunstâncias menos carregadas, a retratação
parcial bastaria para satisfazer a ambos os lados. Mas a
"Nature" solicitou aos autores que retirassem o artigo
inteiro, e eles se recusaram. Então a revista publicou a
própria reprovação sem precedentes, na mesma edição
das cartas. Ela dizia que "à luz de diversos pareceres recebidos... a evidência disponível não é suficiente para
justificar a publicação do artigo original".
Quist e Chapela apontam que, mesmo que falhas técnicas tenham surgido, o artigo foi aprovado por três revisores anônimos. Deve ter tido algum mérito. E, quando ele e as críticas foram submetidos a três outros revisores, dois deles notaram especificamente que nenhum
dos comentários negava a conclusão de que há milho
transgênico no México. "Nenhuma das cartas publicadas na "Nature" questionou a descoberta", afirma Quist.
A "Nature" não respondeu diretamente às questões
da "New Scientist" sobre por que não aceitou a retratação parcial dos autores. "A "Nature" nunca disse que as
conclusões do artigo estão erradas", é tudo o que diz o
editor da revista, Philip Campbell. "O que nós dissemos
foi que elas não eram convincentes com base na evidência que publicamos." Ele nega que uma campanha contra Quist e Chapela tenha influenciado sua decisão de
exigir a retirada do artigo -e de renegá-lo depois.
Pressão anônima
Mas que houve uma campanha, isso houve. Exigências de que o artigo fosse desmentido apareceram em fóruns na internet desde o dia da publicação e continuaram com veemência crescente. No entanto, dois dos primeiros, mais persistentes e aparentemente qualificados críticos na rede, Mary Murphy e
Andura Smetacek, parecem não ser pessoas reais. Um
ativista antitransgênicos britânico, Jonathan Matthews,
afirma ter traçado a origem de suas identidades eletrônicas e chegado a computadores do escritório do Grupo
Bivings, uma empresa de assessoria de imprensa que
tem a Monsanto como cliente. A Bivings inicialmente
negou, mas depois admitiu que um dos e-mails tinha
vindo de um funcionário ou cliente da empresa.
Mas o que mais faz levantar as sobrancelhas é a identidade dos cientistas cujas cartas atacando o artigo de
Quist e Chapela foram publicadas pela "Nature". "Os
antagonistas que assinaram as cartas são todos diretamente ligados ao escândalo político local [de Berkeley"", afirma Ignacio Chapela. Uma delas foi assinada
por Freeling e Nick Kaplinsky, que também é uma figura antiga do mesmo departamento. A outra foi escrita
por Matthew Metz, um ex-microbiologista de Berkeley
que apoiou explicitamente a parceria com a Novartis, e
Johannes Futterer, um jovem pesquisador suíço cujo
chefe, Wilhelm Grusseim, esteve em Berkeley quatro
anos atrás e foi amplamente conhecido como "o homem que trouxe a Novartis para Berkeley".
Quist e Chapela crêem que as animosidades criadas
pelo episódio devem ter tido um papel na confusão sobre seu artigo. Kaplinsky nega. "A questão é estritamente científica. Quist e Chapela publicaram ciência de má
qualidade e deveriam ter tomado a atitude mais honrosa: desmentir o trabalho e pedir desculpas."
Campbell diz que não tinha noção das acusações contra Quist no caso do vandalismo quando aceitou as cartas. Mas ele afirma que isso não teria influenciado sua
decisão de publicá-las. Nem a "Nature" nem Campbell
são bichos de estimação da indústria biotecnológica. O
próprio Campbell escreveu um editorial hostil sobre o
acordo com a Novartis. Mas Quist insiste que a ação da
revista foi motivada por pressões políticas.
Quem quer que tenha razão, o episódio revela uma
ruptura alarmante no discurso científico. Na sequência
do caso, Campbell escreveu que só pode ter sido obra da
lei de Murphy o fato de o embaraçoso passo atrás da revista ter se dado "em relação a uma das mais debatidas
tecnologias do nosso tempo". Teme-se que o caso tenha
posto o sistema de revisão à prova -e que ele não tenha
respondido.
O espectro de atores ocultos manipulando eventos é
particularmente preocupante. No seu descrédito do artigo, a "Nature" pediu aos leitores que se concentrassem na ciência por trás da disputa. Mas falhou em alertá-los sobre as disputas privadas por trás das cartas públicas. Tampouco revelou a identidade e afiliação dos
cinco revisores que apoiaram o estudo, ou do sexto que
aparentemente persuadiu a revista a se retratar.
Também fora do alcance da vista estão os indivíduos
por trás de Mary Murphy e Andura Smetacek, para não
falar das pessoas que destruíram o milho de Freeling
dois anos atrás. Estranhamente, as sombras escuras são
atiradas pelo brilho berrante da publicidade.
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