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Micro/Macro
Um presente do céu
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Como todo bom brasileiro vivendo
em lugar frio, gosto sempre de reclamar do clima. Se no Brasil as pessoas reclamam do calor, aqui é justamente o
oposto: onde moro, no norte da Nova Inglaterra, o inverno dura uns seis meses,
de novembro até abril. Fora o frio, no inverno os dias são extremamente curtos.
Como o Sol, nas altas latitudes, descreve
um arco muito tímido durante o dia, sua
luz não dura mais do que nove horas, das
7h até as 16h. Resumindo, ficamos com
frio e ainda por cima no escuro.
Mas nem tudo é tão terrível assim. Morar em altas latitudes tem algumas vantagens. Algumas delas nos são dadas pelos
céus. Em torno do dia 30 de outubro, o
Sol entrou em crise: enormes tempestades solares lançaram quantidades gigantescas de matéria através do Sistema Solar, um fenômeno chamado ejeção de
massa coronal. Essas ejeções ocorrem
com certa frequência, mas raramente
com a intensidade dessa última.
Bolhas gigantescas de gás ionizado
atravessaram os 150 milhões de quilômetros entre o Sol e a Terra em menos de 20
horas, ou seja, a velocidades de mais de
2.000 quilômetros por segundo. Você
pisca os olhos, e a bolha de matéria solar
viajou 2.000 quilômetros. O interessante
é o que ocorre quando as partículas vindas do Sol são capturadas pelo campo
magnético da Terra.
Que a Terra é um gigantesco ímã sabemos pelo uso das bússolas: a agulha da
bússola, feita de material magnetizado,
tende a se alinhar com o campo magnético terrestre, apontando sempre na direção norte. Os pólos magnéticos não estão
alinhados com os geográficos. O pólo
Norte magnético está a uma latitude de
80N, enquanto o Sul está a 60S.
O campo magnético da Terra tem a
forma de um véu que se afunila nos dois
pólos magnéticos. Na verdade, são inúmeros véus que se superpõem continuamente, como as camadas de uma cebola.
O campo, que se estende até grandes distâncias, cria dois cinturões de partículas,
um a 3.000 km de altitude e outro, bem
mais distante, a 20 mil km.
Em comparação, a atmosfera terrestre
chega apenas a 40 km de altitude: o campo magnético terrestre vai muito além da
atmosfera. São os chamados cinturões
de Van Allen, o cientista americano que
construiu os instrumentos a bordo do
satélite que os descobriu. Eles fazem parte da "magnetosfera" terrestre, a região
em torno da Terra onde existe um campo magnético.
As partículas aprisionadas nos cinturões, como moscas entre dois vidros, são
principalmente elétrons e prótons provenientes do Sol. Os prótons, aproximadamente 2.000 vezes mais pesados que
os elétrons, habitam principalmente o
cinturão mais próximo da Terra.
Quando ocorre uma ejeção de massa
solar, mais prótons são capturados pelos
cinturões de Van Allen. São esses prótons que causam um dos fenômenos naturais mais espetaculares, a aurora. Ver
uma aurora é uma das grandes vantagens de viver em altas latitudes, um verdadeiro presente do céu. A tempestade
solar no final de outubro criou uma logo
acima da minha casa. Uma visão que jamais esquecerei.
No hemisfério Norte, ela se chama aurora boreal. No Sul, aurora austral. As
partículas escapam dos cinturões e "descem" até a atmosfera terrestre em movimento espiral, como crianças em um escorregador. Suas colisões com as moléculas de ar da atmosfera geram radiação
luminosa de várias cores, e o céu é decorado por cortinas de luz que oscilam lentamente como se estivessem ao vento.
A que presenciei era vermelha e alaranjada, bem adequada para a noite antes de
Halloween, a festa das bruxas. Seus vários véus pareciam estar brotando de um
ponto fixo no céu, como pétalas de uma
flor incandescente. Em sua fantástica trilogia "His Dark Materials" (Os Seus Materiais Negros), o autor inglês Philip Pullman fala da aurora como uma entidade
mágica, separando universos paralelos.
Vendo os céus brilhando em plena noite,
eu quase acreditei nele.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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