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Ciência em Dia
Proibição da clonagem pela ONU
Marcelo Leite
editor de Ciência
O jornalista britânico David Dickson,
diretor do site Rede de Ciência e
Desenvolvimento (www.scidev.net), defendeu recentemente num editorial
(www.scidev.net/Editorials/index.cfm)
que a ONU não deveria banir a clonagem
humana, se deliberar sobre o assunto nas
próximas semanas, como previsto. Seus
argumentos são ponderados e ponderáveis, o que exige boa dose de reflexão.
A posição mais fácil, sem dúvida, é ficar contra a clonagem e a favor da proibição. Mostra-se quase visceral a repugnância que a fabricação de cópias de seres humanos suscita, e a experiência ensina que cabe prestar atenção ao que dizem nossas entranhas.
Para quem tem estômago forte, há os
argumentos éticos formais. O filósofo
Jürgen Habermas, por exemplo, acha
que nascer com a carga genética escolhida por outrem rebaixa a pessoa diante de
todas as outras que tenham herdado
aleatoriamente seus quinhões de DNA.
Dickson escolhe o caminho menos batido. Na sua opinião, o problema está na
chance razoável de que a proibição global abarque os dois tipos de clonagem, a
reprodutiva e a terapêutica. Ocorre que
os lobbies antiaborto conseguiram influenciar países poderosos, como os
EUA, a defender na ONU a posição de
que a proibição só poderia ser adotada se
banisse ambas as formas.
Clonagem reprodutiva é a que todos
conhecem, usada para produzir a ovelha
Dolly em 1996 e, de lá para cá, uma dezena de outros mamíferos. Toma-se uma
célula de animal adulto e um óvulo desprovido de núcleo, forçando sua fusão
por meios técnicos (como uma descarga
elétrica). A célula resultante pode passar
a se comportar como um ovo e originar
um embrião, que, se implantado num
útero, com sorte dará origem a um organismo com patrimônio genético idêntico
ao do adulto que doou a célula inicial.
A clonagem terapêutica é semelhante,
a não ser pelo fato fundamental de que o
resultado da fusão não chega a ser implantado no ventre de uma fêmea. Antes
disso ele é destruído para a retirada das
chamadas células-tronco embrionárias,
com as quais a biomedicina promete desenvolver terapias revolucionárias para
algumas doenças degenerativas, como o
mal de Parkinson.
Uma proibição genérica impediria a
continuação desses estudos, o que muitos cientistas consideram limitação indevida e imprudente da liberdade de pesquisa. Como Dickson, acham que a proibição, se adotada, deveria recair apenas
sobre a clonagem reprodutiva.
Ora, quem condena toda e qualquer
forma de clonagem o faz em geral por razões morais, muitas vezes de ordem religiosa. De uma perspectiva verdadeiramente universalista, tais razões não são
piores nem melhores do que as imagináveis para proibir só a clonagem reprodutiva, também elas de fundo moral.
Dito isso, a posição mais consistente
seria defender a ausência de proibição
-mesmo porque, sustentam os mais
pragmáticos (ou mais cínicos), a clonagem terminará sendo feita, de um jeito
ou de outro. Como a história não se cansa de mostrar, tais injunções não costumam ter grande efeito desencorajador
sobre a "hybris" que impera nos laboratórios, "essas cozinhas repugnantes em
que conceitos são refogados com ninharias", nas palavras de Bruno Latour.
Além disso, ninguém garante que a
clonagem reprodutiva não possa um dia
entrar em ressonância com aspirações
humanas, em lugar de causar calafrios.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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