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+Ciência
Nas asas da antimatéria
Salvador Nogueira/Folha Imagem
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Concepção artística do veículo espacial movido a antimatéria concebido por Steven Howe, da empresa HBar Technologies |
Engenheiro americano defende que veleiro de antimatéria
poderia ser a tecnologia capaz de sobrepujar a barreira que separa
a humanidade das viagens interestelares
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Salvador Nogueira
da Reportagem Local
O engenheiro nuclear americano Steven Howe
aposta que, embora hoje apenas engatinhem,
os bebês do Sistema Solar vão um dia crescer e
fazer o que, nos velhos tempos de berço do século 21, parecia impensável: construir artefatos que tornarão o desafio de atravessar as distâncias interestelares
uma trivialidade. Financiado pelo Instituto de Conceitos Avançados da Nasa (agência espacial dos EUA), ele
atualmente trabalha em uma tecnologia que pode ser a
solução. Sua idéia é construir um veleiro espacial
-movido a antimatéria.
Tudo que já se fez e se falou sobre viagem espacial, incluindo aí alunissagens, estações orbitais e sondas automáticas enviadas às profundezas do Sistema Solar, são
como ir até a esquina, quando comparadas às dimensões de uma viagem interestelar. Se para ir da Terra à
Lua é preciso percorrer a supostamente grande distância de 383 mil quilômetros, o percurso daqui até Alfa
Centauri, a estrela mais próxima do Sol, é cerca de 98
milhões de vezes maior. As dimensões são tão absurdas
que a medida preferida das distâncias interestelares é o
ano-luz -o quanto a luz é capaz de percorrer em um
ano, zunindo pelo espaço vazio a impensáveis 300 mil
quilômetros por segundo. Para ir do Sol a Alfa Centauri,
a luz, que é a coisa mais rápida que existe, gasta quatro
anos.
O artefato humano mais distante já enviado ao espaço, a sonda Voyager-1, lançada em 1977, hoje está a pouco mais de 12 bilhões de quilômetros da Terra. Para chegar a Alfa Centauri, precisaria cobrir essa distância mais
umas 3.200 vezes. Se fosse na mesma balada, estaria
chegando lá no ano 82002. O que levanta a pergunta: será que os filhos do Sistema Solar estão irremediavelmente restritos aos domínios desse quintal compreendido por nove planetas, suas luas e mais alguns pedregulhos afins remanescentes de sua origem?
Howe vem gestando a noção de um veleiro a antimatéria desde pequeno, quando foi inspirado por um velho seriado de ficção científica que mostrava naves alimentadas por um motor de reação de matéria e antimatéria, viajando pela Via Láctea como se estivessem indo
até a padaria mais próxima: "Jornada nas Estrelas" (Star
Trek). "Foi lá que eu primeiro ouvi falar de antimatéria,
quando era adolescente. De certo modo, foi isso que me
colocou no caminho que eu trilho hoje em dia."
Ao contrário do que pode parecer, antimatéria não é
um conceito mirabolante criado para roteiros de ficção
científica. Trata-se de uma decorrência direta da principal teoria física que explica a composição de tudo que
existe no mundo em termos de suas menores unidades,
o Modelo Padrão. A matéria com que todo mundo está
familiarizado é aquela composta por átomos cujos
componentes são os prótons, com carga positiva, os
nêutrons, com carga neutra, e os elétrons, com carga
negativa. Mas o Modelo Padrão também sugere a existência de partículas muito similares, com cargas opostas -ou seja, prótons negativos e elétrons positivos.
Juntos, formariam átomos iguais, mas com propriedades opostas. Antiátomos, se preferir.
Curiosamente, todo o Universo conhecido é feito de
matéria -se houve produção de antimatéria durante o
Big Bang (a explosão que gerou o cosmos e tudo que há
nele), ela sumiu por completo. O que não é uma hipótese tão desmiolada: para fazer sumir antimatéria, basta
chocá-la com matéria. As duas se aniquilam mutuamente e liberam sua massa na forma de energia -o que
não é pouca coisa. Segundo a teoria, a energia contida
em uma dada quantidade de matéria é igual à massa
multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz.
"Para ir longe, a nave precisa ter alto valor de energia
por quilo", explica Howe. "Energia nuclear poderia permitir uma missão a Plutão ou um pouco mais longe,
mas não uma missão à estrela vizinha. Antimatéria tem
mil vezes mais energia do que combustível nuclear."
Onde está Wally?
Tudo bem, antimatéria pode ser o
Santo Graal da liberação de energia. Mas, se ela não
existe na natureza (pelo menos, não mais), falar de seus
poderes miraculosos não é perda de tempo? Quando há
um acelerador de partículas por perto, certamente não.
Usando essas gigantescas máquinas, os cientistas podem fazer colidir minúsculos pedaços de matéria a velocidades impressionantes. O resultado do choque é a
conversão de energia num verdadeiro zoológico de partículas elementares -entre elas, antipartículas. Capturadas por armadilhas magnéticas, essas antipartículas
podem ser armazenadas e manipuladas. E vários progressos têm sido feitos no sentido de aumentar o ritmo
em que antiátomos podem ser produzidos nesses laboratórios. Mas ainda estão bem longe de viabilizar fábricas eficientes de antimatéria -hoje gasta-se muito
mais energia produzindo essas partículas do que o que
se obteria com o resultado de sua aniquilação.
"Antimatéria é cara para se produzir agora", diz Howe. "Mas é o sistema perfeito de armazenagem de energia. Vamos investir um bocado em instalações em terra
para produzir miligramas de antimatéria, mas esses miligramas vão enviar uma nave para o espaço profundo.
E, se perseguirmos essa tecnologia, vamos encontrar
meios de produzi-la de modo mais barato", arremata.
Apostando nisso, em 2000, Howe fundou a empresa
HBar Technologies, cujo objetivo é justamente desenvolver várias aplicações de uso de antimatéria, indo de
usos médicos a exploração espacial. "Estamos estudando várias aplicações comerciais para as quantidades de
antimatéria produzidas hoje no Fermilab [Laboratório
Nacional Acelerador Fermi, em Batavia, Illinois, nos
EUA]. As principais apostas são o uso de antimatéria
para detectar câncer e também matar tumores", conta.
No campo espacial, entretanto, ainda há uma grande
barreira para a aplicação imediata. Como lançar ao espaço um equipamento contendo antimatéria que, em
caso de falha, produziria uma explosão de proporções
nunca antes vistas? Essa é uma boa pergunta, para a
qual Howe ainda não tem resposta. "Com as habilidades que temos hoje, não poderíamos lançar muita antimatéria para o espaço", afirma. "Mas lembre-se de que
a missão do Instituto de Conceitos Avançados da Nasa,
o financiador dessa pesquisa, é examinar tecnologias
para daqui a 40 anos. Nossa meta é identificar as possibilidades e projetar o caminho para atingi-las. Com sorte, conforme desenvolvermos a habilidade de produzir
e armazenar antimatéria nas próximas décadas, vamos
ter a habilidade de protegê-la no lançamento."
Vela de urânio
O conceito de sonda interestelar que
Howe desenvolveu funciona em um sistema combinado de fissão nuclear e aniquilação de antimatéria. A vela
da sonda, recoberta por uma camada de urânio, seria
bombardeada por partículas de antimatéria. A energia
liberada dispararia um processo de fissão dos átomos
de urânio (como acontece na explosão de uma bomba
atômica), que por sua vez geraria mais energia. As liberações energéticas conjuntas propeliriam a nave. E a
boa notícia é que a intensidade das reações energéticas
pode ser precisamente controlada pelos disparos de antimatéria -evitando que a nave simplesmente inicie
uma reação em cadeia que faça com que ela exploda.
Graças a isso, o sistema pode oferecer aceleração por
um período bem longo, cerca de 1 milhão de segundos
-bem mais do que qualquer outra sonda já inventada.
Segundo Howe, com uma vela muito menor (e portanto mais factível) do que as gigantescas exigidas para
os projetos de veleiros solares (que são propelidos pela
própria luz vinda do Sol ao se chocar com a gigantesca
superfície das velas), seria possível levar sua nave movida a antimatéria até a nuvem de Oort, o enorme cinturão de velhos cometas e asteróides formado bem além
da região dos planetas durante o nascimento do Sistema Solar. O mesmo sistema, potencialmente, poderia
ser empregado na primeira sonda interestelar humana.
Por ora, são apenas idéias, movidas por ciência básica,
algum embasamento experimental e muito entusiasmo. Mas só o fato de já haver uma proposta para levar a
presença do homem para além do confinamento de seu
próprio sistema planetário já é um alento para acreditar
que mais uma barreira supostamente intransponível
possa cair diante da inventividade humana.
Se isso vai mesmo acontecer, e se a antimatéria vai ter
algo a ver com isso, ainda é cedo para dizer. Howe está
convicto: "Antimatéria é uma tecnologia na sua infância", diz. "Acredito que nas próximas décadas a antimatéria terá o mesmo impacto nas nossas vidas que o transistor teve nos últimos 40 anos. Em duas décadas poderemos testemunhar uma sonda ser enviada para fora do Sistema Solar, rumo ao espaço desconhecido."
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