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Micro/Macro
Repensando a nossa existência
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
A vida é um experimento em complexidade: conhecemos os ingredientes, os vários compostos químicos que
fazem parte dos seres vivos, mas não sabemos como combiná-los para formar
sequer o mais simples deles. Ainda não
sabemos como reproduzir a vida no laboratório. Dadas as várias combinações
possíveis de átomos de carbono, nitrogênio, oxigênio etc., é mesmo maravilhoso
o salto da química à biologia, do inerte ao
vivo. Outro salto maravilhoso é o da vida
à vida inteligente, certamente um resultado raro dentre os vários possíveis caminhos evolutivos.
A raridade da inteligência nos seres vivos nos põe em uma situação delicada,
indo de encontro ao que aprendemos
nos últimos 400 anos de ciência, que,
quanto mais descobrimos sobre o Universo, menos importantes parecemos
ser. Afinal, nós vivemos em uma dentre
bilhões de outras galáxias espalhadas pela vastidão do espaço, cada qual com bilhões de estrelas. A matéria que nos compõe e às estrelas é de pouca importância:
a maior parte da matéria cósmica não é
feita de prótons e elétrons, mas de algo
que não produz a sua própria luz, a ainda
misteriosa matéria escura. Tanto a nossa
localização no cosmo como a nossa composição material não são lá das mais relevantes. Mas as nossas mentes são.
Pelo que se sabe, não existem outras
formas de vida inteligente. Caso existissem, provavelmente já teríamos sido visitados. Perdoem-me os crentes em visitas de ETs, mas elas não ocorreram.
Nossa galáxia, com diâmetro de 100
mil anos-luz e idade de 12 bilhões de
anos, já teria sido atravessada inúmeras
vezes por outras civilizações inteligentes.
Parece que isso não ocorreu -a menos,
claro, que os alienígenas tenham vindo
bem antes de nós existirmos e partido
sem deixar pistas, ou sem vontade de estabelecer um diálogo. Dado que existem
várias incógnitas (como podemos entender a psique de extraterrestres, quando
mal entendemos a nossa?), devemos
manter a cabeça aberta e repetir, com
Carl Sagan, que "a ausência de evidência
não significa a evidência de ausência".
Talvez ETs sejam apenas muito tímidos.
Vamos supor que sejamos, de fato, um
evento raro no cosmo. Nesse caso, devemos estar prontos para assumir, sozinhos, uma enorme responsabilidade:
preservar o nosso legado, sobrepujando
os nossos instintos destrutivos. Os seres
humanos são capazes das mais belas
criações e dos mais horrendos crimes. É
muito conveniente sonharmos com alienígenas sábios e serenos, que irão nos
educar e inspirar antes que seja tarde.
Esses ETs são as versões modernas dos
santos e profetas das várias religiões, que
nos trazem esperança e fé. (Já os destrutivos são a versão dos demônios, ou, talvez, de nós mesmos.) Mas, se nós estamos sozinhos, temos de encontrar essa
sabedoria por nós mesmos. Talvez seja
aqui que possa existir um casamento entre ciência e ética religiosa. Podemos começar estendendo o provérbio do Antigo Testamento -"faça aos outros o que
queres que façam a ti"- da sociedade
para todos os seres vivos, conhecidos ou
não, aqui e em todo o cosmo.
Para tanto, seria bom começar a aprender um pouco com a elegância e a simplicidade do mundo natural. Por trás da ordem que vemos em nossos corpos e à
nossa volta, existe uma necessidade inerente de existir e de criar estruturas complexas, através de combinações e ligações entre entidades diversas. Esse impulso criativo se manifesta do mundo
subatômico até os confins do Universo
observado, incluindo, claro, seres vivos.
Ele tem a ver com a economia das estruturas ligadas, com o fato de que, juntas,
entidades conseguem minimizar a energia necessária para se autopreservar.
Todos os processos naturais invariavelmente escolhem o caminho mais econômico para chegar a seu objetivo. Isso é
verdade para átomos, bactérias, elefantes
ou galáxias. Mas nós nos distanciamos
da natureza e nos tornamos seres dispendiosos. Nossos excessos são revelados no desprezo com que tratamos o planeta e a nós mesmos. Se somos mesmos
raros, temos de merecer essa distinção e
não nos tornarmos vítima dela.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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