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Micro/Macro
A elusiva matéria escura
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
A ciência nem sempre avança a passos certos. Muito pelo contrário, o processo de desenvolvimento das teorias
científicas é marcado por pistas falsas,
divergências de opinião e vários recomeços após tentativas fracassadas. Essa luta
toda não é uma fraqueza da ciência, mas
consequência de nossas próprias limitações ao lidar com os desafios impostos
pela natureza. É sempre bom lembrar
que sem dúvida o conhecimento não
avança.
Dos vários desafios atuais, um dos
mais fascinantes é o da matéria escura.
Ao contrário da matéria luminosa, como
a que vemos em estrelas e certas nuvens
de gás, ela não produz a sua própria luz.
Sua existência foi proposta para explicar
um aparente problema com a velocidade
de rotação das estrelas em galáxias.
Galáxias são aglomerados de estrelas e
gás, principalmente hidrogênio e hélio.
Como tudo no Universo, de planetas a
estrelas, as galáxias também giram. A sua
velocidade de rotação é medida através
da observação da rotação das estrelas em
torno do centro da galáxia.
No século 17, o físico inglês Isaac Newton propôs as três leis de movimento e a
lei da atração gravitacional, que juntas
ditam como as estrelas devem girar em
torno do centro das galáxias. De acordo
com a segunda lei de movimento de
Newton, a aceleração de um objeto é
proporcional à força aplicada sobre ele
dividida pela sua massa. Quando essa lei,
junto com a lei da atração gravitacional, é
aplicada ao movimento das estrelas em
galáxias, a previsão é que a velocidade de
rotação das estrelas atinja um valor máximo a uma certa distância do centro e
comece a cair a partir daí.
Surpreendentemente, não é o que se
observa. Na maioria das galáxias, a velocidade de rotação chega a um valor máximo mas, em vez de cair a partir dali, ela
fica aproximadamente constante. As observações discordam da teoria de Newton, a mais aceita da física clássica.
Das duas, uma: ou a teoria de Newton
tem de ser modificada para grandes distâncias, ou existe mais matéria do que a
luminosa que vemos nas galáxias. Essa
última hipótese leva à matéria escura,
um tipo de matéria cuja presença só pode ser detectada por sua atração gravitacional sobre outras formas de matéria luminosa, como as estrelas nas galáxias.
As primeiras idéias sobre matéria escura datam da década de 1930, quando o
astrônomo Fritz Zwicky mostrou que as
velocidades de galáxias em aglomerados
de galáxias (sistemas onde várias galáxias giram uma em torno da outra, atraídas pela gravidade) são muito maiores
do que o que se pode inferir devido à
existência apenas da matéria luminosa.
Hoje, a maioria dos astrônomos e físicos acredita que essa matéria escura seja
muito mais abundante do que a matéria
de que nós somos feitos. Para os proponentes dessa hipótese, cerca de um terço
do Universo é composto de matéria escura, enquanto apenas 5% é composto
de matéria luminosa. O problema com
esse cenário é que, até hoje, ninguém
conseguiu detectar essa matéria escura,
apesar dos esforços. Essa dificuldade tem
levado alguns físicos a optar pela primeira solução, modificar a teoria de Newton.
A proposta que vem sendo levada mais
a sério é a de Mordehai Milgrom, físico
israelense do Instituto de Pesquisas
Weizmann. Segundo Milgrom, quando
as acelerações são muito pequenas, como é o caso das estrelas em galáxias, ou
de galáxias em aglomerados de galáxias,
a segunda lei de Newton é modificada de
forma que a força seja proporcional ao
quadrado da aceleração.
Nesse esquema, chamado Mond (sigla
em inglês de "dinâmica newtoniana modificada"), uma mesma aceleração pode
ser obtida com uma força menor, ou seja, com uma gravidade mais fraca. A
modificação de Milgrom se encaixa
muito bem nas observações, fazendo até
certas previsões que foram confirmadas.
Mas ela é apenas uma teoria fenomenológica, desenhada para funcionar.
Resta ver se existe algum princípio
mais fundamental que determina essa
modificação, ou se o Universo é repleto
de matéria exótica. Nesse meio tempo, a
crise inspira a criatividade dos físicos.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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