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Micro/Macro
O quantum e a realidade
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Crise é fundamental em ciência; sem
crise não há progresso, apenas estagnação. Quando investigamos como a
ciência progride na prática, vemos que é
aos trancos e barrancos: os cientistas não
têm sempre todas as respostas na ponta
da língua. O processo criativo de um
cientista pode ser bem dramático, muitas vezes envolvendo a agonia da dúvida
e, em alguns casos, o êxtase da descoberta. Vista sob este prisma, a ciência não está assim tão distante da arte.
Na maioria das vezes, as crises nas
ciências naturais são criadas por experiências realizadas em laboratórios ou
por observações astronômicas que simplesmente não se encaixam nas descrições e teorias da época: novas idéias são
necessárias, idéias essas que, às vezes,
podem ser revolucionárias. Em geral, revolução em ciência implica novas e inesperadas concepções da realidade, chocantes a ponto de intimidar os próprios
cientistas.
Um exemplo foi a transição de um cosmo geocêntrico (a Terra no centro) para
um cosmo heliocêntrico (o Sol no centro), que ocorreu durante o século 16.
Outro exemplo, o que quero discutir hoje, foi a revolução quântica ocorrida no
início do século 20, cujas consequências
podem ser medidas de dois modos: pela
explosão de tecnologias dependentes de
processos quânticos, incluindo transistores, semicondutores, lasers, energia
nuclear, enfim, muitos dos aparelhos
que hoje nos cercam e que, de certa forma, definem a vida moderna; e pela mudança em nossa concepção do que vem a
ser realidade e a sua relação com o conceito de informação.
Antes, um pouco de contexto. A revolução quântica trata da física dos átomos
e das partículas subatômicas, como os
elétrons e os prótons. Uma das suas consequências mais importantes foi a descoberta de que, no mundo do muito pequeno, todos os processos são descontínuos.
Por exemplo, em nossa realidade, uma
bola cai continuamente no chão, a Lua
gira continuamente em torno da Terra,
uma onda viaja continuamente no mar
até quebrar na praia. Já um elétron não
gira continuamente em torno de um núcleo atômico; suas órbitas são "quantizadas", separadas umas das outras como as
camadas de uma cebola. O elétron só pode estar em uma dessas camadas e não
entre elas, do mesmo modo que nós não
podemos estar entre dois degraus de
uma escada.
Quando falo em elétron, próton ou
partícula o leitor imagina imediatamente
algo como uma bola de bilhar, localizada
no espaço. Porém, a física quântica mostra que qualquer objeto pode ser visto
também como uma onda, o exato oposto
de uma partícula: uma onda se espalha
pelo espaço. Claro, você não vê o seu chefe ou um ônibus ondulando. Esses efeitos só são relevantes no mundo quântico. Mas lá, um elétron pode ser visto como uma bola de bilhar ou uma onda. E
quem decide? O observador.
A resposta depende de como observamos o elétron, do tipo de experiência que
montamos. Se a experiência forçar a colisão do elétron com outra partícula, ele se
comportará como uma bola de bilhar. Se
ela for de interferência, por exemplo, o
elétron passando por duas fendas em
uma tela, com um detector ao fundo, ele
se comportará como uma onda, gerando
padrões de interferência. O observador
define a realidade física do elétron. Aliás,
não podemos nem dizer que o elétron
existe antes de o observarmos.
Portanto, no mundo quântico não podemos separar o observador do observado. E nem do conceito de informação.
Afinal, qualquer medida ou observação
cria informação: em que órbita atômica
o elétron está em um determinado momento, como ele está girando em torno
do núcleo, em que sentido ele está girando em torno de si mesmo (no sentido horário ou anti-horário) etc. Como em física quântica todas as quantidades são
descontínuas, o processo físico mais
simples é aquele que envolve o mínimo
possível de informação, um bit, uma resposta que só pode variar entre um ou zero, sim ou não.
Voltemos ao elétron passando por
duas fendas. Se taparmos uma delas, ele
passará com certeza pela outra. Quando
as duas estão abertas, não podemos dizer
por qual das duas o elétron passa: ele
passa pelas duas, como uma onda. Imagine um observador com apenas um bit
de informação; se ele o usar para medir
por qual fenda o elétron passa, ele não terá como dizer em que posição o elétron
irá se chocar com o detector ao fundo.
Ou seja, existe um indeterminismo intrínseco no mundo quântico; as coisas
acontecem sem uma razão óbvia, definindo uma realidade independente da
existência de observadores. Nós só podemos contar parte da história.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (Estados Unidos),
e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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