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+ciência
Obra de Leslie Alan Horvitz tenta atribuir revoluções na ciência a iluminações de indivíduos geniais, mas enfrenta dificuldades com as invenções coletivas
Os lampejos do gênio
Salvador Nogueira
da Reportagem Local
De onde vêm os impulsos que, de
uma hora para outra, produzem as revoluções científicas? O
mais novo livro da escritora
Leslie Alan Horvitz, "Eureca!", tenta
apresentar uma resposta com uma série
de análises de casos reais.
Com uma narrativa envolvente (Horvitz já escreveu vários livros de ficção), o
leitor tem a chance de conhecer alguns
dos momentos mais interessantes da história da ciência e da tecnologia. Os 12 capítulos apresentam, cada um, um momento decisivo, em que a participação
de um dado pesquisador ou teórico foi
fundamental. A escolha dos protagonistas é interessante, por mesclar as velhas e
manjadas figuras da ciência, como Isaac
Newton, Albert Einstein e Charles Darwin, a desconhecidos do público, como
Philo Farnsworth e Friedrich Kekulé. No
meio do caminho, estão figuras de quem
ouvimos falar de passagem na escola e
depois, geralmente, nunca mais. Exemplos dessa categoria são Alfred Wegener
e Dmitri Mendeleiev.
O discurso inerente a cada uma das
narrativas é a noção de que a grande
maioria das descobertas e sacadas científicas fundamentais surge a partir de lampejos, momentos de sublime distração,
quase instantes de pura clarividência. É
romântico, dá um bom livro, dá ao cientista um ar de iluminado ou escolhido,
mas, sinceramente, fora do aspecto literário, não convence muito.
O tom de Horvitz é claro desde o primeiro parágrafo: "O progresso científico
vem por espasmos: anos de trabalho árduo em um laboratório podem se revelar
infrutíferos, mas um passeio contemplativo no campo pode produzir uma descoberta revolucionária surpreendente."
De todos os casos relatados ao longo
do livro, o que talvez melhor se encaixe
na visão romântica de Horvitz seja o de
Alexander Fleming, que descobriu a penicilina por simples descaso -ele esqueceu algumas de suas amostras sobre a
bancada do laboratório e, quando voltou, descobriu que haviam sido contaminadas por mofo, que por sua vez produzia uma substância bactericida.
"Serendipity" em seu melhor estilo,
sem dúvida alguma. A palavra inglesa
não tem equivalente em português e denota a capacidade de induzir a ocorrência de situações reveladoras de forma
não-intencional (a tradutora Marcia
Epstein Fiker se sentiu à vontade com o
neologismo "serendipidade").
Mas a maior parte das histórias narradas em "Eureca!" está muito longe de ter
seu ponto focal em lampejos e frutos do
acaso. E em alguns casos a tentativa de
reforçar essa idéia incorre em erros e raciocínios perigosos, como o de supor que
talvez haja verdade na velha lenda de que
Newton teria sido inspirado pela queda
de uma maçã para conceber sua venerável teoria da gravitação.
Um conceito muito mais sólido e coerente para explicar o surgimento das
descobertas científicas em seu tempo é o
designado pelo termo alemão "Zeitgeist"
-o espírito de uma dada época (aqui a
tradutora não se arriscou a aportuguesar). Embora Horvitz reconheça a importância dessa idéia para explicar como
vários cientistas foram capazes de chegar
às mesmas conclusões, ao mesmo tempo
e independentemente, sua narrativa parece se esforçar para dar pouco destaque
a isso, enfatizando a importância de seus
protagonistas escolhidos. Alfred Russel
Wallace se torna uma pequena passagem
na grandiosa história de Charles Darwin
em sua busca "serendipitosa" por uma
teoria satisfatória da evolução.
Apesar disso, o aspecto agradável e leve
da leitura tem seus méritos e traz para
perto do público um pouco do raciocínio
e do esforço envolvidos na produção do
conhecimento científico. Embora todos
os grandes gênios de Horvitz pareçam, a
princípio, ser indivíduos dotados de formação acadêmica totalmente não-convencional, fica claro que não seria possível realizar o que fizeram se não conhecessem profundamente o que veio antes
deles. Nesse embalo, o livro agarra a
chance de trazer à tona sagas obscuras,
como a que levou à criação da televisão.
As pessoas sempre se perguntam por
que algumas invenções, por mais importantes que sejam, não acabam associadas
a um criador. Talvez seja porque realmente não exista um único inventor capaz de ser coroado como o "dono" daquele conceito. Embora Horvitz tente
apresentar Philo Farnsworth como o homem por trás da televisão, sua narrativa
deixa muito clara a noção de que o americano foi só o inventor que encontrou a
última peça de um enorme quebra-cabeça, cuja solução seria impossível sem os
elementos concebidos por outros.
Com o espírito preparado para questionar descrições hollywoodianas da
ciência, o leitor pode tirar grande proveito de "Eureca!". Ele não só apresenta
uma qualidade didática sempre apreciável em livros de divulgação, como pode
servir de inspiração para os que talvez
não vejam hoje na ciência uma atividade
com muito espaço para lances criativos.
De resto, só é de estranhar que a charmosa história que deu origem à expressão-título não estar lá. O geômetra grego
Arquimedes, do século 3º a.C., descobriu
que poderia diferenciar uma massa de
ouro de outra feita de outro material a
partir de sua densidade, que pode ser
aferida afundando as massas numa banheira e medindo o deslocamento de
água. Ao sacar isso, teria saído do banho
para a rua, nu, gritando pelas ruas de Siracusa: "Eureca! Eureca!" (Achei! Achei!)
Põe serendipidade nisso.
Eureca!
de Leslie Alan Horvitz
224 págs. R$ 29,00
A partir da segunda semana de novembro. Editora Bertrand Brasil (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/2585-2070)
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