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+ ciência
Livro de antropólogo britânico busca desfazer mito de "escada" evolutiva que
levaria aos humanos modernos e ressalta dilemas do cotidiano de hominídeos
As espécies do humano
Universidade de Zurique/France Presse - 03.ago.2001
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Reconstrução de menina neandertal feita por Christopher Zollikofer e Marcia Ponce de León
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Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha
Não demorou muito para que a
potencialmente explosiva idéia
do naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), para
quem os humanos seriam só mais um ramo dos grandes macacos africanos, fosse
domesticada. A imagem que aclimatou a
revolução darwiniana às amarras da
Grande Cadeia do Ser aristotélica é familiar para qualquer um que já tenha se interessado por evolução humana: da esquerda para a direita, primatas cada vez
maiores, mais eretos e menos peludos se
sucedem, em direção ao grande objetivo
final, o Homo sapiens.
Cada vez mais, no entanto, fica claro
que no mundo real as coisas aconteceram de um jeito bem diferente. Nenhum
hominídeo (como os cientistas apelidam
as espécies que pertencem à família humana) conseguiu sobreviver e passar
seus genes adiante, permanecendo entre
os competidores do jogo da evolução,
porque se esforçou para se tornar o mais
H. sapiens possível. Descobertas como a
do Sahelanthropus tchadensis, um hominídeo bizarramente moderno para os
seus 6 milhões ou 7 milhões de anos de
idade, sugerem que a árvore genealógica
humana lembra mais um arbusto, um
emaranhado de galhos que se entrelaçam, se confundem e, às vezes, secam
sem deixar fruto para a posteridade.
É a visão erradamente progressiva da
evolução que está o problema, diz o antropólogo britânico Robert Foley, da
Universidade de Cambridge, em seu livro "Os Humanos antes da Humanidade", lançado agora no Brasil. Em vez de
considerar cada hominídeo como um
"elo perdido" a meio caminho de se tornar humano, argumenta ele, é preciso
encarar essas criaturas como entidades
evolutivas autônomas, que respondiam
a demandas ambientais de curto prazo.
Um dos entraves para entender isso é
que as pessoas se acostumaram a fazer
perguntas sobre a evolução humana que
soam absurdas quando aplicadas a outros grupos animais. Ninguém se indaga
à exaustão sobre qual das dezenas de espécies de antílope é a mais "avançada".
As diferenças de tamanho, anatomia e
hábitos entre eles claramente apareceram em resposta a condições ambientais
distintas. O mesmo vale para a linhagem
humana, por mais especial que ela pareça aos olhos de si mesma.
Produzir uma síntese coerente e atualizada dos intermináveis debates sobre o
assunto é trabalho enervante, para dizer
o mínimo. Cada novo golpe de pá nos
rincões da África Oriental costuma exumar mais um candidato a fóssil revolucionário -sem falar na proverbial falta
de consenso entre "lumpers" (os cientistas que enfatizam a unidade da linhagem
hominídea e juntam vários espécimes
numa espécie só) e "splitters" (os que
acham que pequenas diferenças anatômicas já são o suficiente para criar uma
nova espécie). Foley escapa com brilhantismo dessa corda bamba ao se concentrar no pano de fundo: o surgimento do
andar bípede, a especificidade da inteligência humana e as razões do papel dominante da África nesse drama.
A estratégia do antropólogo revela seu
potencial na abordagem do enigma do
bipedalismo humano, que já suscitou todo tipo de explicação pseudobrilhante,
da vantagem conferida pela postura sobre dois pés ao uso de ferramentas à possibilidade de carregar os filhotes no colo
e, assim, cuidar melhor deles.
No fundo, diz Foley, a verdadeira raiz
do problema foi um mero cálculo da relação custo-benefício. Os hominídeos tinham acabado de perder boa parte do lar
ancestral dos grandes macacos, as florestas tropicais que sofreram um retraimento sem precedentes no fim do Mioceno, há cerca de 6 milhões de anos. Para
alguns, o jeito foi descer das árvores e explorar a recém-criada savana -um ambiente aberto e quente onde a comida estava muito mais dispersa.
Uma postura bípede era muito mais
eficiente para explorar esse ensolarado
mundo novo, em especial quando comparada ao tipo específico de andar quadrúpede dos grandes macacos, porque
reduzia a área do corpo exposta ao sol e
permitia a viagem por distâncias maiores. Uma adaptação adicional foi a perda
da grossa pelagem corporal que outrora
recobria os hominídeos -e então boa
parte do que hoje se considera humano
(um primata "nu, encalorado e suarento", como diz Foley) estava no lugar. As
mãos mais livres para usar ferramentas
não passavam de um subproduto, um
potencial que permaneceu inexplorado
pelos 3 milhões de anos seguintes.
O antropólogo usa raciocínio parecido
para explicar por que é tão "difícil", do
ponto de vista evolutivo, se tornar humano -com toda a parafernália de linguagem e cultura complexas, tecnologia
avançada e domínio global que o Homo
sapiens construiu. O dilema a esse respeito é, outra vez, mera invenção humana, sugere Foley: a inteligência e a cultura surgiram em contextos específicos
-não só ambientais, mas também sociais e comportamentais. Só nesses contextos é que elas foram "adaptativas" (ou
seja, conferiram vantagens reprodutivas
que moldaram a evolução).
Não adianta muito se perguntar por
que os golfinhos não construíram uma
civilização tecnológica planetária: a maravilhosa (ou terrível) combinação de
eventos que produziu isso só foi possível
para um grupo de primatas africanos
tentando achar o que comer na savana.
Os Humanos Antes da Humanidade
de Robert Foley
294 págs. R$ 43,00
Unesp Editora (pça. da Sé, 108, CEP 01001-900,
São Paulo, tel. 0/xx/11/3242-7171)
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