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Ciência em Dia
Linhas tortas e erradas
Marcelo Leite
editor de Ciência
Duas semanas atrás, foi comentada
aqui a retratação de um artigo científico na revista "Science" que criara alarmismo um ano antes quanto à possibilidade de que a droga recreacional ecstasy
causasse mal de Parkinson. Parece que a
moda está pegando: agora é a não menos
prestigiada "Nature Medicine" (www.nature.com/naturemedicine) que vem
publicar uma dessas humilhantes admissões de erro e culpa. O detalhe é que,
entre uma coisa e outra, transcorreram
42 meses, e não 12, como na "Science".
Em ambos os casos, é tempo demais.
Quem ainda vai se lembrar da notícia
auspiciosa sobre o câncer renal, entre as
centenas que foram publicadas desde
então na imprensa especializada como
na leiga, para então apagá-la dos registros e da memória?
O mais provável, alertam os próprios
editores da "Nature Medicine", é que o
artigo continue a ser citado como pesquisa válida e apoio firme à idéia de que
se possa curar câncer com a vacinação
por híbridos de células tumorais e dendríticas. A retratação não invalida para
sempre essa linha de pesquisa, decerto,
mas quem se decidir a prosseguir com
ela em seu laboratório não pode mais escorar-se na autoridade do grupo da Universidade de Göttingen (Alemanha) liderado por Alexander Kluger.
Vale a pena ler a retratação, que tem
pouco mais de uma linha na edição de
setembro da revista: "Os autores desejam unanimemente suspender ["retract']
esse trabalho [citado no título] em razão
de várias afirmações incorretas e da
apresentação errônea de dados primários, resultados e conclusões".
Apesar de inequívoca, de algum modo
essa retratação lacônica parece insuficiente diante da repercussão que a notícia obtivera em março de 2000, no mundo todo. Chegou a ser registrada na Folha, ainda que discretamente, em seção
de notas à pág. 32 deste caderno, no dia
12 daquele mês, sob o título "Oncologia":
"Pesquisadores da Universidade de Göttingen, em estudo publicado na "Nature
Medicine", desenvolveram uma vacina
que combate o câncer renal, na fase em
que a doença começa a se espalhar pelo
corpo, a partir de substâncias produzidas pelas próprias células cancerígenas."
É quase certo que a notícia deva ter animado milhares de portadores de tumores renais no Brasil -infundadamente,
agora se vê. Trata-se do pior tipo de desserviço que o jornalismo científico pode
prestar, ainda que de modo involuntário.
Serve, ao menos, para vacinar seus militantes contra o excesso de confiança depositado no mecanismo de "peer-review" (revisão por pares) dessas publicações especializadas. Pelo que fica demonstrado no exemplo, esse filtro de
qualidade não é infalível. Mais falíveis
ainda, como o longo intervalo de três
anos e meio sugere, parecem ser os procedimentos editoriais para a publicação
dessas retratações. Os editores se justificam dizendo, em editorial na pág. 1.093
da edição de setembro da "Nature Medicine", que vários meses foram necessários, primeiro, para convencer todos os
autores da necessidade da retratação, e,
depois, outro tanto para que chegassem
a um acordo sobre sua redação.
Pelo menos ajudaram a chamar a atenção, com o editorial, para a senda tortuosa que trilharam na companhia dos autores flagrados, intitulando-o, constrangida e apropriadamente, "O Longo Caminho da Retratação".
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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