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Ciência em Dia
Os próximos 50 anos do DNA
Marcelo Leite
editor de Ciência
Anteontem completaram-se 50 anos
da publicação da estrutura da molécula do DNA por James Watson e Francis Crick. Ainda que nos anos 1950 seu
impacto tenha sido modesto, como mostrou o historiador Robert Olby, a descoberta foi paulatinamente reconstruída
como o momento inaugural de uma revolução nas ciências da vida, que teriam
deixado de vez os meandros da história
natural para se tornarem exatas, já como
biologia molecular.
Não por acaso, o cinquentenário coincidiu com a terceira e definitiva finalização do Projeto Genoma Humano, o PGH
(em 2000 e 2001, o anúncio de um rascunho e sua publicação já haviam alavancado ampla cobertura jornalística). Muito já se escreveu sobre o significado dessa
façanha, que a ninguém cabe desmerecer, mas uma mudança crucial no que se
diz e publica sobre ela precisa ser ressaltada, para que não submerja na torrente
laudatória.
Há pouco mais de uma década, quando o PGH ainda engatinhava nos planos
do Departamento de Energia (DOE) dos
Estados Unidos, o genoma era dado como o Santo Graal da biologia. Em outras
palavras, a porta para desvendar o que
significa ser humano, ou a tradução do
Livro da Vida.
Tais metáforas grandiosas e irrefletidas
ainda são empregadas, ainda que não
com a mesma frequência, e menos por
cientistas do que por jornalistas. Mais
comum, agora que os mais de US$ 3 bilhões foram gastos (US$ 2,7 bilhões só
pelo governo americano), é o genoma
ser apresentado para o público como um
(novo) começo, como a pré-história de
uma outra era. Nela, a caracterização
molecular-informacional do vivo ampliará seus domínios para os territórios
da complexidade escamoteada no meio
século de 1953 a 2003: das proteínas e
suas interações à modelagem computacional das centenas de cascatas de reações bioquímicas (vias metabólicas) entrelaçadas que compõem a atividade frenética de uma célula.
O roteiro existe e foi descrito em letra
de forma no último dia 11 na revista
"Science" (www.sciencemag.org) por
cinco visionários do mesmo DOE, entre
eles o lendário Aristides Patrinos -peça-chave na conversão da biologia para o
esquema "Big Science" dos projetos Manhattan (bomba atômica) e Apollo (ida à
Lua). O programa já tem até nome: "Genomes to Life" (
http://DOEGenomesToLife.org), "Genomas para a Vida" ou
"Dos Genomas até a Vida", quer dizer,
da transcrição dos genes em bits até a reconstrução digital da própria vida (em
escala celular).
Na visão do GTL, tal expansão do modelo genômico terá consequências superlativas para todos os domínios da vida e da sociedade planetárias, muito
além da medicina (lembre-se, revolucionar a saúde humana era a promessa pré-histórica do DNA). Da produção de alimentos à de energia, das matérias-primas ao saneamento da poluição ambiental, todos os problemas se dissolverão
sob a luz redentora do conhecimento
biomolecular e de processos biomiméticos na base da produção material.
Escrevendo sobretudo para americanos, e americanos vitoriosos em mais
uma guerra, Patrinos e parceiros concluem o artigo renovando promessas de
supremacia: "Conhecimento é poder, e
precisamos desenvolver um entendimento abrangente dos sistemas biológicos se quisermos usar suas capacidades
eficazmente para dar conta de desafios
societais imensos". E com um pedido de
renovação de crédito, claro: "Enfrentar
esses desafios de maneira expedita exige
dar passos ousados agora para alcançar
um novo ritmo de descoberta biológica,
mais rápido e mais eficiente".
Talvez nem todas essas promessas sejam realizáveis, mas aqueles que se preocupam com o rumo da ciência devem ficar atentos para seu renovado potencial
de provocar apenas choque e espanto.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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