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Micro/Macro
Medo da ciência
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
O legendário Fausto, em busca de sucesso e vida eterna, barganhou sua
alma com Mefistófeles. No final, como
em todas as histórias em que o homem
tenta ir além de seus limites mortais, as
coisas acabam mal. Curioso que, segundo o "Aurélio", o adjetivo "fausto" signifique feliz, próspero. Talvez por um tempo, diria o pobre personagem, ardendo
eternamente nas chamas do inferno.
Se a crença em barganhas sobrenaturais está em declínio (ou, pelo menos, deveria), a crença em barganhas naturais
está em franca ascensão: o que Fausto
tentou obter invocando o diabo, é, talvez,
algo que a ciência irá nos dar, num futuro não tão longínquo. A questão é: qual
será o preço e quem deverá pagá-lo?
Existem algumas áreas de pesquisa que
podem acabar destruindo seus criadores
e o resto da humanidade. Talvez o exemplo mais familiar seja o da energia atômica, capaz de gerar enormes quantidades
de energia, mas também bombas e desastres ecológicos seríssimos, causados
ou não por terroristas.
O leitor astuto percebeu que o título
deste ensaio não é "medo de ciência"
mas "medo da ciência". Aqui, o medo
não é aquele tradicional, tipo "não pude
ou quis aprender na escola, muito enrolado, o professor era um louco" etc. É o
medo do que a ciência pode causar. É o
caso dos enxertos genéticos, que não são
a mesma coisa que clonagem. A idéia é
interferir no genoma de um embrião ou
até antes, selecionando este ou aquele gene como se escolhe canapé em festa.
Por exemplo, o pai, baixinho e careca,
que sempre apanhou na escola, escolhe
ter filho homem, de 1,90 metro, louro e
forte feito um Hércules. Assim, o filhote,
quando tiver uns 15 anos, vai poder dar
uma surra nos coroas que batiam em seu
pai quando criança. Quem sabe até a técnica será desenvolvida a tal ponto que
tornará possível escolher os genes de seu
filho por catálogo, direto na internet, ou
em clínicas de engenharia de gente. Será
o caso de se criar uma nova profissão, a
de designers de humanos. A diferença
essencial entre a engenharia de genes e a
clonagem é que, na clonagem, os genes
não só são dos pais ou de um doador, como são deixados intactos.
O livro recente do americano Bill
Mckibben "Basta: Mantendo-se Humano em uma Era Engenhada", chama a
atenção aos perigos dessa e de outras tecnologias emergentes. Segundo Mckibben, existe uma confusão em relação ao
uso benéfico da engenharia de genes, como a cura de doenças graves, e a sua absoluta necessidade. Existe outra possibilidade, que evita o uso dos enxertos.
Por exemplo, se os pais são diagnosticados como portadores de genes que
apresentam um risco de gerar crianças
doentes, a solução não é alterar os genes,
mas escolher, dentre vários embriões,
aqueles que não têm os genes nocivos.
Ou mesmo escolher entre óvulos e espermatozóides: o bebê, com futuro saudável
garantido, pode então ser gerado na proveta. Com isso, pode-se evitar que uma
criança venha ao mundo com seu futuro
destruído, sem que seja necessário desenvolver técnicas de engenharia genética, com todas a suas consequências.
Caso contrário, alerta Mckibben, o preço será a nossa humanidade. Afinal, se
for possível "engenheirar" os nossos descendentes, não haverá mais incertezas e
inquietudes com relação às gerações futuras, surpresas e desapontamentos. Tudo será conforme o planejado, as crianças do jeito que os pais querem, robôs,
frutos de suas fantasias e sonhos.
E o que essa geração irá criar de novo?
Muito provavelmente, a destruição da
geração de seus pais, que a roubou do
acaso. E os que não podem pagar por essas escolhas? Serão uma sub-raça? Não
vejo como interromper o progresso científico. Se é proibido aqui, será feito ali, se
não oficialmente, clandestinamente. O
homem será sempre ganancioso. Espero,
apenas, que com conhecimento venha
também sabedoria, o que, em geral, não
ocorre. A menos que se descubra qual é o
seu gene.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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