|
Texto Anterior | Índice
Ciência em Dia
A chatice da prosa científica
Marcelo Leite
editor de Ciência
Azar daqueles que, sem serem pesquisadores, se vêem obrigados a ler
rotineiramente revistas científicas. Como já disse Francis Crick, um dos descobridores da estrutura do DNA, "não há
forma de prosa mais difícil de entender e
mais tediosa de ler do que o artigo científico mediano".
É fato, não é boato: literatura científica
é um troço chato. Mas não precisa ser.
Qualquer um que tenha lido um ensaio
de Stephen Jay Gould, Jared Diamond ou
Carl Sagan sabe que ciência natural nada
tem de incompatível com estilo.
Exemplo muito citado é um texto de
1979 de Gould e de Richard Lewontin,
que usam os tímpanos da catedral de São
Marcos, em Veneza, para explicar seu
conceito evolutivo de "exaptação". Saiu
nos "Proceedings" da Royal Society, de
Londres.
Talvez com alguma imprudência, a
também britânica "Nature" de 22 de
maio deu destaque à doença que infesta
suas próprias páginas. Publicou uma reportagem de Jonathan Knight intitulada
"Clear as Mud" (claro como lama). OK, o
texto saiu na parte noticiosa da revista,
que busca dar a não-especialistas -e todo cientista é um não-especialista fora de
sua área- uma idéia do que acontece no
panorama da pesquisa mundial.
Knight relata as pesquisas de Donald
Hayes, sociólogo aposentado da Universidade Cornell, sobre a dificuldade de leitura de artigos científicos. Hayes criou
um índice de dificuldade baseado na
ocorrência de palavras mais (ou menos)
comuns (www.soc.cornell.edu/hayeslexical-analysis). O nível zero corresponde à linguagem de jornais diários.
Seus cálculos apontam que os artigos
em revistas científicas como "Nature" e
"Science" saltaram na última década da
casa dos 20-25 pontos para a dos 30-35
pontos. Há 50 anos, ficavam em torno de
15 pontos na escala de dificuldade. Há
cem, o placar estava em zero -quer dizer, no plano dos jornais.
É claro que a maior responsável por isso é uma crescente especialização da pesquisa. Ela traz consigo o excesso de jargões, como acontece de forma aguda na
biologia. Um exemplo representativo de
título de artigo: "NF-kappaB2/ p100 induz a expressão de Bcl-2". Até certo ponto isso facilita a comunicação entre especialistas, mas ao preço de afastar cada vez
mais leigos do texto.
Bem, entre as pessoas comuns que recuam com horror diante dessa dificuldade estão repórteres de ciência. Alguns
cientistas já começaram a perceber que
ter seu trabalho noticiado num jornal ou
revista ajuda a torná-lo mais conhecido
também entre cientistas. Isso aumenta a
chance de o artigo vir a ser citado, o que
reforça seu impacto, que pode ser e é medido (com base nas listas de referências
publicadas ao final de cada texto).
Por falar em impacto, a mesma edição
da "Nature" noticia outra pesquisa curiosa, feita por Mikhail Simkin e Vwani
Roychowdhury, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Rastreando a repetição de erros tipográficos em referências, eles descobriram que muitos cientistas copiam listas inteiras delas, o que
permite supor que não leiam os artigos
que citam nos próprios trabalhos.
O texto de Simkin e Roychowdhury
pode ser obtido da internet (http://xxx.lanl.gov/ftp/cond-mat/papers/0305/0305150.pdf). Começa em grande
estilo: "Durante o "Projeto Manhattan" (a
construção da bomba atômica), [o físico
Enrico] Fermi perguntou ao general
[Leslie] Groves, chefe do projeto, qual
era a definição de um "grande" general.
Groves respondeu que qualquer general
que tivesse vencido cinco batalhas seguidas poderia seguramente ser chamado
de "grande" ".
É fato, não é boato: ciência não precisa
ser um troço chato.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Texto Anterior: Micro/Macro: Medo da ciência Índice
|