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Micro/Macro
Descida a um "Maelström" cósmico
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Nas lendas e mitos de todas as culturas, um tema reaparece com frequência: o das viagens fantásticas, em
que um ou mais homens (e/ou mulheres) enfrentam enormes desafios e
monstros em partes estranhas do mundo, reais ou imaginárias.
As aventuras simbolizam um processo
de transformação pessoal, muitas vezes
ligado a um despertar espiritual: a pessoa
que sobrevive à aventura não é a mesma.
Ela se torna herói (ou heroína), com uma
visão de mundo diferenciada, mais sábia. Os perigos enfrentados e as várias tarefas que precisam ser concluídas representam passos nesse processo de amadurecimento. Nessas histórias, a pessoa se
reinventa através de suas explorações.
Quem conhece a trilogia épica "O Senhor
dos Anéis" sabe ao que me refiro.
Quando era adolescente, devorava os
contos de Edgar Allan Poe. Um dos que
mais me impressionaram foi (e é) "Descida no Maelström", que narra a terrível
aventura de um explorador que é tragado pelo Maelström, um redemoinho gigantesco que, segundo lendas da Idade
Média, existia na costa da Noruega.
Uma viagem ao interior do Maelström
era uma viagem só de ida; dele, ninguém
saía. Apenas, claro, o narrador do conto,
cujos cabelos, que no início da viagem
eram negros como as penas de um corvo, tornaram-se inteiramente brancos.
A certa altura, quando era evidente que
ele não escaparia da atração do turbilhão, diz: "Sentia positivamente um desejo de explorar-lhe as profundezas,
mesmo ao preço do sacrifício que ia fazer; e meu maior pesar era que jamais
poderia contar a meus amigos, na praia,
os mistérios que iria conhecer". A astrofísica revela mistérios de turbilhões cósmicos ainda mais espetaculares.
A narrativa de Poe é metáfora excelente para uma viagem a um buraco negro.
Mesmo que, na Terra, o Maelström tenha provavelmente cedido lugar a uma
gigantesca plataforma de petróleo no
Atlântico Norte, o cosmo está repleto deles. Uma viagem até um seria ainda mais
memorável do que a do herói de Poe.
Buracos negros são formados quando
uma estrela de massa bem maior do que
a do Sol (ao menos oito vezes) esgota o
combustível nuclear em seu interior e finalmente sucumbe à sua própria gravidade. O processo de implosão da estrela
é marcado por um dos eventos mais espetaculares e energéticos que existem,
uma explosão de supernova.
Após a explosão, que ejeta uma enorme quantidade de matéria e radiação
através do espaço, resta um núcleo central, que vai encolhendo cada vez mais,
devido à sua própria gravidade. Eventualmente, esse núcleo se transformará
em um buraco negro. A força da gravidade de um objeto depende de sua massa e
de seu tamanho. Por exemplo, a mesma
quantidade de massa pode ter uma gravidade pequena, quando espalhada em
um volume maior, ou grande, se concentrada em um volume menor.
Portanto, na medida em que os restos
da estrela vão encolhendo, sua gravidade
vai aumentando: quanto menor o objeto,
mais difícil escapar dele. Em um certo
ponto, o objeto é tão compacto, e sua
gravidade, tão gigantesca, que nem mesmo a luz pode escapar dele. É então que
dizemos que o objeto se transformou em
um buraco negro.
Os efeitos estranhos de uma viagem a
um buraco negro vêm da associação entre a geometria do espaço (e do tempo) e
a quantidade de matéria nele. Segundo a
teoria da relatividade de Einstein, matéria encurva o espaço e afeta o fluir do
tempo. Um buraco negro é o caso extremo: o espaço à sua volta se fecha sobre si
mesmo, como um casulo, e o tempo passa a ficar cada vez mais como o espaço.
Normalmente, podemos viajar em
qualquer direção do espaço, mas o tempo só flui para o futuro. Num buraco negro, o oposto ocorre: só existe uma direção possível de viagem, ao seu centro,
onde a gravidade é, teoricamente, infinita. De lá ninguém sai. A menos que o buraco negro esteja em rotação, como um
redemoinho, um Maelström cósmico.
Nesse caso, o ponto central se abre em
uma garganta, uma passagem pelo espaço até outro local no universo. Imagino
que, se algum dia alguém conseguir atravessar essa garganta cósmica (chamada
buraco de verme), sair com cabelos
brancos será irrelevante. Mistérios profundos sobre a estrutura mais íntima do
espaço e do tempo lhe seriam revelados.
Acho que Poe concordaria comigo.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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