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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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Ciência em Dia

O cerco a Von Hagens

Marcelo Leite
editor de Ciência

Gunther von Hagens que se cuide. Depois de atrair centenas de milhares de pessoas para suas exposições na Europa e na Ásia, e depois também de ser apelidado de "Walt Disney da Morte", o anatomista alemão do chapéu de feltro negro (www.plastination.com) corre o risco de ter sua exibição de cadáveres plastinados barrada nos EUA.
Pelas regras do puritanismo norte-americano, o interior de corpos humanos só pode ser objeto de contemplação quando circunscrito pelas duas dimensões das telas de cinema. Nunca com a exuberância tridimensional propiciada pela plastinação -por favor.
Essa técnica, inventada por Von Hagens quando ainda era um estudante de medicina, permite substituir a carne por matéria plástica, com manutenção da cor original dos tecidos. Anatomia pura, sem putrefação nem odores. Atenção e foco totalmente concentrados na visão, o que explica o fascínio das multidões.
Voyeurismo, decerto, mas sem obscenidade. Apesar dos volumes e dos matizes da intimidade, ela é a que todos os Homo sapiens sapiens partilham, igualitariamente. A carne aparece despida da pessoa e oferecida para uma aproximação asséptica, respeitosa. Nada a ver com a volúpia vertiginosa de corpos despedaçados, por exemplo, do filme sanguinolento "Gangues de Nova York". Como diz Von Hagens, trata-se de reconstituir a beleza sob a pele -e não de rompê-la com requintes de coreografia.
Não resta dúvida de que é perturbador, e o gosto, duvidoso, para muitos. Mas assim se mostram muitas obras da arte contemporânea, em que a carne e suas secreções têm figurado com proeminência. Só que Von Hagens parece ir longe demais, para os patrulheiros da bioética.
Segundo reportagem de John Bohannon na revista "Science" (www.sciencemag.org) de 29 de agosto (págs. 1.172-1.175), o sucesso de sua última exposição em Londres não impediu ataques como o de Sandy Thomas, do Conselho Nuffield de Bioética, uma ONG britânica: "A exposição de Von Hagens levanta algumas dúvidas muito sérias sobre consentimento", disse ela à "Science". Mais ferino, Tom Shakespeare, da Universidade de Newcastle, também do Reino Unido, afirma que Von Hagens é "um showman que usa o disfarce da ciência para angariar milhões de audiências voyeuristas".
Artista ou negocista, o fato é que Von Hagens está erguendo um império de plastinação em Dalian, na China, onde um corpo é preparado a cada dia. Segundo ele, com pleno consentimento da pessoa e de parentes. Sua idéia é ter três exposições completas -com cadáveres plastinados em poses como a de um jogador de basquete em ação- em viagens simultâneas pelo mundo.
Com um pouco de sorte, uma delas pode acabar aportando no Brasil. Resta saber como reagirão as autoridades daqui, que têm alta tolerância a cadáveres, ao menos nas periferias e nas prisões.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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