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Ciência em Dia
O cerco a Von Hagens
Marcelo Leite
editor de Ciência
Gunther von Hagens que se cuide.
Depois de atrair centenas de milhares de pessoas para suas exposições na
Europa e na Ásia, e depois também de
ser apelidado de "Walt Disney da Morte", o anatomista alemão do chapéu de
feltro negro (www.plastination.com)
corre o risco de ter sua exibição de cadáveres plastinados barrada nos EUA.
Pelas regras do puritanismo norte-americano, o interior de corpos humanos só pode ser objeto de contemplação
quando circunscrito pelas duas dimensões das telas de cinema. Nunca com a
exuberância tridimensional propiciada
pela plastinação -por favor.
Essa técnica, inventada por Von Hagens quando ainda era um estudante de
medicina, permite substituir a carne por
matéria plástica, com manutenção da
cor original dos tecidos. Anatomia pura,
sem putrefação nem odores. Atenção e
foco totalmente concentrados na visão, o
que explica o fascínio das multidões.
Voyeurismo, decerto, mas sem obscenidade. Apesar dos volumes e dos matizes da intimidade, ela é a que todos os
Homo sapiens sapiens partilham, igualitariamente. A carne aparece despida da
pessoa e oferecida para uma aproximação asséptica, respeitosa. Nada a ver com
a volúpia vertiginosa de corpos despedaçados, por exemplo, do filme sanguinolento "Gangues de Nova York". Como
diz Von Hagens, trata-se de reconstituir
a beleza sob a pele -e não de rompê-la
com requintes de coreografia.
Não resta dúvida de que é perturbador,
e o gosto, duvidoso, para muitos. Mas assim se mostram muitas obras da arte
contemporânea, em que a carne e suas
secreções têm figurado com proeminência. Só que Von Hagens parece ir longe
demais, para os patrulheiros da bioética.
Segundo reportagem de John Bohannon na revista "Science" (www.sciencemag.org) de 29 de agosto (págs. 1.172-1.175), o sucesso de sua última exposição
em Londres não impediu ataques como
o de Sandy Thomas, do Conselho Nuffield de Bioética, uma ONG britânica: "A
exposição de Von Hagens levanta algumas dúvidas muito sérias sobre consentimento", disse ela à "Science". Mais ferino, Tom Shakespeare, da Universidade
de Newcastle, também do Reino Unido,
afirma que Von Hagens é "um showman
que usa o disfarce da ciência para angariar milhões de audiências voyeuristas".
Artista ou negocista, o fato é que Von
Hagens está erguendo um império de
plastinação em Dalian, na China, onde
um corpo é preparado a cada dia. Segundo ele, com pleno consentimento da pessoa e de parentes. Sua idéia é ter três exposições completas -com cadáveres
plastinados em poses como a de um jogador de basquete em ação- em viagens simultâneas pelo mundo.
Com um pouco de sorte, uma delas pode acabar aportando no Brasil. Resta saber como reagirão as autoridades daqui,
que têm alta tolerância a cadáveres, ao
menos nas periferias e nas prisões.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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