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São Paulo, domingo, 29 de junho de 2003

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Ciência em Dia

Furo!

Marcelo Leite
editor de Ciência

Jamie Whitaker mal nasceu e já se tornou celebridade. Cidadão britânico, ele havia sido concebido em Chicago porque seus pais não conseguiram autorização da Autoridade em Fertilização e Embriologia Humanas (HFEA, na abreviação em inglês) para produzi-lo no próprio país. Jamie é o que já está sendo chamado de "irmão salvador" pelos tablóides (jornais populares) do Reino Unido, uma criança gerada para fornecer tecidos vivos para tentar salvar a vida de outro filho de seus pais.
O irmão de Jamie se chama Charlie e sofre de uma forma rara de anemia causada por anomalia genética (genes que não funcionam como na maioria das pessoas e impedem o corpo de produzir uma proteína crucial para a saúde). A doença do menino afeta apenas 600 ou 700 pessoas no mundo inteiro, segundo o jornal britânico "The Guardian".
Michelle e Jayson Whitaker, da cidade de Sheffield, têm outra filha, Emily, mas as células de seu sangue não são compatíveis com as do irmão. No caso de um transplante, provocariam uma rejeição mortal. Como foi concebido por técnicas de fertilização "in vitro" -quer dizer, fora do corpo da mãe-, Jamie pôde ter suas células testadas antes de ser implantado no útero, uma forma de confirmar sua compatibilidade com as de Charlie.
Há discussão no Reino Unido sobre a decisão da HFEA de recusar a licença, tomada com base numa lei de 1990, uma das primeiras do mundo. Muitos ainda acham que faz sentido proibir que os pais se utilizem da tecnologia para escolher o patrimônio genético dos filhos.
Médicos e pesquisadores, porém, defendem que seja feita uma exceção para casos em que a ausência de futilidade é óbvia. Uma coisa é escolher o sexo de um entre vários embriões antes da implantação no útero, outra é selecionar aquele com mais chances de salvar uma vida.
A complicação não termina aí, contudo. É questionável, também, a maneira como a tentativa de solução do problema de Charlie foi financiada.
A história do nascimento de Jamie foi contada com exclusividade pelo tablóide londrino "Mail". Antes, o drama da família Whitaker havia saído nas páginas do "Mirror", outro diário bem ao gosto popular. Agora, portanto, foi o "Mail" que deu um furo, como se diz no jargão jornalístico (o título acima é uma homenagem ao romance homônimo de Evelyn Waugh, de 1938).
Ocorre que o furo do "Mail" não parece ter sido obtido graças à agilidade de seus jornalistas, mas sim porque o tablóide teria pago por ele. Segundo reportagem de Sarah Boseley no "Guardian" (www.guardian.co.uk/genes/article/ 0,2763,981218,00.html), a operação toda -incluindo as viagens a Chicago- teriam custado aos Whitakers o equivalente a R$ 100 mil, que teriam sido cobertos pelo pagamento do "Mail".
A prática de comprar exclusividade é bem difundida entre tablóides britânicos, mas não há como justificar tal manipulação da informação (sem juízo de valor sobre a decisão da família, que são outros 500) -a não ser, claro, que se admitam concorrência comercial e entretenimento como únicos valores do serviço público que nos séculos 19 e 20 atendia pelo nome "imprensa", hoje "mídia".
Já a regra monolítica de que não se deve manipular o patrimônio genético de uma pessoa, apesar de sensata em termos gerais, comporta discussão nos casos particulares. Caso contrário, corre o risco de esclerosar-se em mais um princípio fundamentalista.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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