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Ciência em Dia
Furo!
Marcelo Leite
editor de Ciência
Jamie Whitaker mal nasceu e já se tornou celebridade. Cidadão britânico,
ele havia sido concebido em Chicago
porque seus pais não conseguiram autorização da Autoridade em Fertilização e
Embriologia Humanas (HFEA, na abreviação em inglês) para produzi-lo no
próprio país. Jamie é o que já está sendo
chamado de "irmão salvador" pelos tablóides (jornais populares) do Reino
Unido, uma criança gerada para fornecer tecidos vivos para tentar salvar a vida
de outro filho de seus pais.
O irmão de Jamie se chama Charlie e
sofre de uma forma rara de anemia causada por anomalia genética (genes que
não funcionam como na maioria das
pessoas e impedem o corpo de produzir
uma proteína crucial para a saúde). A
doença do menino afeta apenas 600 ou
700 pessoas no mundo inteiro, segundo
o jornal britânico "The Guardian".
Michelle e Jayson Whitaker, da cidade
de Sheffield, têm outra filha, Emily, mas
as células de seu sangue não são compatíveis com as do irmão. No caso de um
transplante, provocariam uma rejeição
mortal. Como foi concebido por técnicas
de fertilização "in vitro" -quer dizer, fora do corpo da mãe-, Jamie pôde ter
suas células testadas antes de ser implantado no útero, uma forma de confirmar
sua compatibilidade com as de Charlie.
Há discussão no Reino Unido sobre a
decisão da HFEA de recusar a licença, tomada com base numa lei de 1990, uma
das primeiras do mundo. Muitos ainda
acham que faz sentido proibir que os
pais se utilizem da tecnologia para escolher o patrimônio genético dos filhos.
Médicos e pesquisadores, porém, defendem que seja feita uma exceção para
casos em que a ausência de futilidade é
óbvia. Uma coisa é escolher o sexo de um
entre vários embriões antes da implantação no útero, outra é selecionar aquele
com mais chances de salvar uma vida.
A complicação não termina aí, contudo. É questionável, também, a maneira
como a tentativa de solução do problema
de Charlie foi financiada.
A história do nascimento de Jamie foi
contada com exclusividade pelo tablóide
londrino "Mail". Antes, o drama da família Whitaker havia saído nas páginas
do "Mirror", outro diário bem ao gosto
popular. Agora, portanto, foi o "Mail"
que deu um furo, como se diz no jargão
jornalístico (o título acima é uma homenagem ao romance homônimo de
Evelyn Waugh, de 1938).
Ocorre que o furo do "Mail" não parece ter sido obtido graças à agilidade de
seus jornalistas, mas sim porque o tablóide teria pago por ele. Segundo reportagem de Sarah Boseley no "Guardian"
(www.guardian.co.uk/genes/article/
0,2763,981218,00.html), a operação toda
-incluindo as viagens a Chicago- teriam custado aos Whitakers o equivalente a R$ 100 mil, que teriam sido cobertos
pelo pagamento do "Mail".
A prática de comprar exclusividade é
bem difundida entre tablóides britânicos, mas não há como justificar tal manipulação da informação (sem juízo de valor sobre a decisão da família, que são
outros 500) -a não ser, claro, que se admitam concorrência comercial e entretenimento como únicos valores do serviço
público que nos séculos 19 e 20 atendia
pelo nome "imprensa", hoje "mídia".
Já a regra monolítica de que não se deve manipular o patrimônio genético de
uma pessoa, apesar de sensata em termos gerais, comporta discussão nos casos particulares. Caso contrário, corre o
risco de esclerosar-se em mais um princípio fundamentalista.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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