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+ Marcelo Leite
Complicações e libertações
Gawande expõe
sem meias palavras
a imperfeição
da medicina
A literatura médica é uma das
formas misteriosas de literatura, aquela em que o caso particular de dor e sofrimento ("pathos")
pode alcançar uma espécie de universalidade concreta. Qualquer um pode
se comunicar com ele -basta saber ler
e estar vivo. Deve ter algo a ver com a
nossa capacidade inata de sentir empatia com aquele que padece, mesmo
que seja um animal.
De Sigmund Freud a Oliver Sacks,
há grandes escritores ocupados em
narrar os desvios, os atalhos e as variantes em que se mete aquilo que é
humano. Na sua companhia, rompemos entretidos a fronteira entre o animal e o espiritual e nos descobrimos
menos perfeitos. Drauzio Varella chega muito perto dessa grandeza, com
seu antológico "Por Um Fio".
Com tanta coisa para dar errado
num organismo, milagre é que tantos
vivam com saúde. Já elogiei aqui, também, o fantástico livro "Mutantes", de
Armand Marie Leroi. Salvo engano,
esse apoio enfático não foi ainda capaz
de tocar o coração e a mente de algum
editor brasileiro.
Se o leitor tem queda pelo mundo
das esquisitices médicas, segue aqui
outra recomendação -de leitura, porque editado no Brasil o livro já foi.
Aliás, há muito tempo: seis anos. A lerdeza do colunista não justifica, porém,
que um autor tão bom seja omitido:
Atul Gawande, que nos fez o favor de
escrever "Complicações - Dilemas de
um Cirurgião diante de um Ciência
Imperfeita" (Objetiva).
Mais do que revelar bastidores da
medicina, coisa que faz com a competência narrativa de qualquer colaborador da revista "New Yorker", o americano Gawande nos transporta para
dentro da cabeça de um médico em
formação. Melhor ainda: para o âmago do que seria o torturado "órgão moral" do aprendiz de medicina.
O narrador, como tantos dos médicos com que temos de (nos) tratar, lida a cada momento com desafios excruciantes. Tem de decidir o que fazer, mesmo na ausência de todas as informações confiáveis que gostaria de
obter. Não são muitos aqueles capazes
de confiar na própria intuição quando
é a saúde, a dor ou até a vida de outrem que está na linha.
Um dos exemplos dolorosamente
apaixonantes é o do residente que
precisa aprender a estabelecer uma linha de acesso central perfurando a
veia cava por baixo e atrás da clavícula
do paciente. Mesmo que erre duas,
três, quatro vezes, não tem escolha a
não ser continuar furando. Só vai
aprender se continuar.
Gawande discute sem meias palavras esse dilema da medicina. Como
pacientes, queremos excelência. Mas
excelência só se alcança com treino, e
só se pode treinar de verdade com seres humanos. Em geral, pacientes
mais pobres, a usual clientela de hospitais-escola. Não é preciso ir à África
para topar com cobaias humanas.
O próprio Gawande conta que,
quando seu filho precisou ser operado, não aceitou que a cirurgia fosse
feita por um residente em treinamento como ele. Por sinal, o mesmo colega
que havia acertado em cheio o diagnóstico. Preferiu um titular.
Tenho eu mesmo uma filha que está
no quinto ano de medicina. As histórias que conta do grande hospital-escola em que atua como interna são de
arrepiar os cabelos. Não sei se aceitaria para mim -ou para ela- algumas
situações vividas por seus pacientes.
Agradeço a esses pacientes, e a médicos como Ana e Gawande, por carregarem com tanta honestidade o seu
fardo. Não deve ser fácil experimentar
na própria carne que não há outro caminho para sua ciência se tornar um
pouco menos imperfeita.
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas
Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia
( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ).
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
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